A impressão de que os cientistas sociais evitam considerar a biologia em suas análises não é nova[12] e nem incomum[3456], e a afirmação de que eles fazem isso por motivações políticas já foi defendida por vários autores[7891011]. A tese de Steven Pinker[12], no entanto, é a mais extensa e elaborada crítica dentre todas as outras, já que buscou resgatar a história da filosofia e da ciência relacionada ao tema, englobando desde os primórdios da sociologia à “guerra” travada entre defensores e opositores da sociobiologia na segunda metade do século passado, período da publicação de Sociobiology: The New Synthesis, onde o biólogo Edward O. Wilson dedicou um único capítulo para falar sobre o comportamento humano.

A noção, conhecida como biofobia, foi criada segundo a alegação de que, ao aderirem à perspectiva da tábula rasa, com o comportamento humano sendo regido pela história e pela sociedade e as “construções sociais” arbitrando de cima para baixo o que as pessoas vão fazer, desfazer, gostar e desgostar, os cientistas sociais acabem não levando em conta que a espécie humana também possua em seu comportamento padrões passíveis de compreensão complementar pela ótica da teoria da evolução, e fazem isso por temerem que, caso aceitem que temos instintos para a guerra tanto como temos para a paz, para o egoísmo tanto como para a cooperação, para a violência como para a boa convivência, tenham também que aceitar que o status quo seja imutável.

Como menciona Pinker (pp. 204–206), porém, isso é uma confusão conceitual. Mesmo se tivermos que aceitar que a guerra, o estupro, o homicídio e tantas outras infelicidades humanas tenham componentes biológicos que refletem parcialmente o padrão de comportamento primata (e têm[1314]), isso não quer dizer que a luta por uma sociedade melhor seja desnecessária, menos ainda que a melhora do mundo seja impossível (contrariando as expectativas, o próprio Pinker, um grande defensor da psicologia evolucionista, tem dois livros voltados à defesa de que o mundo está melhorando[1516]).

Contudo, dado que alegação de biofobia defendida por Pinker e outros é empírica, ela pode ser testada empiricamente. Um trio de sociólogos fez exatamente isso[17] disponibilizando um questionário de 11 perguntas a 155 outros sociólogos, onde estes, depois de reportarem suas identidades políticas (conservador, moderado, progressista ou radical, com esse último significando algo próximo de “extrema esquerda”), tinham que marcar se achavam conclusões típicas da biologia comportamental plausíveis ou implausíveis. Os itens, em ordem, incluíam alegações de que (1) evoluímos uma tendência a preferir alimentos de alto teor calórico, que (2) o medo tão facilmente desenvolvido de aranhas e cobras reside numa resposta inata de aversão a predadores, que (3) a percepção da beleza física possui componentes correlacionados à capacidade reprodutiva, que (4) o ciúme carrega influências evolucionárias significantes, que (5) homens são naturalmente mais inclinados à poligamia e (6) cometem mais crimes que as mulheres por motivações naturais, além de (7) consumirem mais pornografia e (8) tentarem controlar a sexualidade feminina graças aos benefícios evolucionários ligados ao comportamento sexual promíscuo e de posse.

Embora os achados, em comparação às pesquisas mais antigas, indiquem que existe uma simpatia crescente pela biologia comportamental humana (e um cenário mais dividido e complexo do que os críticos dão a entender), a aceitação de cada um dos pontos refletiu a sensibilidade política que lhes era inerente: no ponto 1, um assunto pouco polêmico, a aceitação foi de 59%, enquanto que, no ponto 8, um assunto muito polêmico, a aceitação foi de 22%. Ou seja, a receptividade às explicações biológicas caiu conforme o aumento da sensibilidade política.


As outras três posições restantes — que (9) algumas pessoas têm, geneticamente, um potencial de inteligência maior do que outras, que (10) a sexualidade tem bases biológicas e (11) que, graças a possuírem cérebros diferentes, homens e mulheres diferem em suas capacidades cognitivas — tiveram a aceitação de, respectivamente, 81%, 70% e 42%. Apesar da surpreendente aceitação dos pontos 9 e 10 ir contra a hipótese de biofobia, talvez haja uma explicação ainda mais simples: já que para a direita conservadora a homossexualidade não é natural e sim um pecado, faz-se necessário, pensa-se, defender que a orientação sexual tenha bases biológicas. É uma exceção confirmando a regra vista dentre os pontos 1–8, onde a simpatia se mostrou inversamente proporcional à carga política. Além do mais, no ponto 11 o padrão também se repetiu e a aceitação foi a menor das três, dando um peso ainda maior à hipótese de biofobia e deixando a boa receptividade ao ponto 9 como um caso isolado.


Tirando que cerca de apenas 29% dos 543 convidados aceitou participar da pesquisa (com uma parcela tendo inclusive se recusado de maneira pejorativa, o que é um possível indicativo de que talvez a aversão à biologia seja maior), algumas coisas ficaram mais claras com os resultados. Contrariando a psicologia da personalidade[18], que costuma sugerir que progressistas e pessoas mais à esquerda tenham uma maior abertura à experiência e um menor dogmatismo em revisar as próprias opiniões, os pesquisadores concluíram que o melhor preditor da negação da biologia comportamental humana é a identidade política: aqueles mais progressistas e radicais (cerca de 131 dentre 155 sociólogos), incluindo os que se identificaram com perspectivas feministas, foram os mais inclinados a rejeitar explicações biológicas.

Sustentando tudo isso, sugerem os autores que o apego à tábula rasa esteja imerso no próprio paradigma sociológico, dado o seu foco único e exclusivo aos processos sociais, com seus estudiosos tendo um fervor à disciplina oriundo tipicamente de um sentimento de identidade de grupo. Eles finalizam mencionando que “a rejeição da sociobiologia pelos sociólogos parece refletir mais do que uma simples discordância intelectual […]. Isto é, muitos sociólogos podem [acabar por] rejeitar a biologia evolutiva não pela plausibilidade das explicações biológicas, mas pela ameaça coletiva que eles sentem que tais explicações representam”.

Ao que parece, na psicologia política existe, da esquerda à direita, um tipo de viés cognitivo que se sobressai quando os fatos só são vistos como fatos quando confirmam a ideologia do grupo — ou, pelo menos, quando não atentam contra ela. Frequentemente[1920] a direita conservadora tem tentado buscar argumentos baseados na evolução contra a esquerda, e mais frequente ainda é a esquerda tachar (com razão) como pseudociências o criacionismo bíblico e a “teoria do design inteligente”, posições tão comuns à direita, salientando que temos uma origem compartilhada com os outros animais graças à seleção natural, e isso enquanto, por outro lado, afirmam aos quatro cantos que “não existe natureza humana, os únicos instintos que temos é o instinto de sobrevivência e o de reprodução”, ignorando, por má fé e desconhecimento, que é impossível que os instintos que dispuseram toda a vida na Terra não exerçam nenhuma influência no comportamento social humano.

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB/UFRJ), bolsista PIBIC em Taxonomia e Sistemática (LabEnt/UFRJ), filiado ao grupo de pesquisa Evolução, Moralidade e Política (CNPq/UFRRJ) e apaixonado pela abrangência da teoria evolutiva.

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