Sobre o texto
Esta é a tradução do artigo “Cognitive Creationism Compared to Young-Earth Creationism” (em português, “Criacionismo Cognitivo Comparado ao Criacionismo da Terra Jovem”), publicado por Shuichi Tezuka no novo periódico científico Journal of Controversial Ideas (JCI). Apesar de aceitar a seleção natural na explicação do corpo humano ser da maneira que é, a esquerda política, demonstra Tezuka, defende que os atributos comportamentais da nossa espécie têm origem na cultura, nas “construções sociais” e na “estrutura” da sociedade. O autor chama isso de “criacionismo cognitivo” e aponta como, ao rejeitar a teoria da evolução “do pescoço para cima”, a esquerda ateísta usa e abusa de praticamente os mesmos meios argumentativos que a direita religiosa, que rejeita a teoria da evolução incondicionalmente.

Sobre o JCI
O Journal of Controversial Ideas é organizado pelos filósofos e eticistas Peter Singer, Francesca Minerva e Jeff McMahan. Eles definem a iniciativa como “o primeiro periódico de acesso público, revisado por pares e de cunho interdisciplinar especificamente criado para promover a livre investigação em tópicos controversos”. A justificativa da existência do periódico está na crescente censura acadêmica ao debate aberto.

A considerar
1. Em língua inglesa, o termo “liberal” é o que no Brasil tem sido conhecido como “progressista”. Ao mesmo tempo, no Brasil, o termo “liberal” remete ao centro político ou, ainda, à direita. Por isso, o tradutor optou por não traduzir o termo literalmente, mas adaptá-lo ao contexto, ficando “progressista” e derivados no lugar (que é o mesmo que esquerdista).
2. A seção de referências foi removida para encurtar o tamanho da leitura; em compensação, todas as referências de artigos ou livros estão perfeitamente acessíveis nas respectivas numerações, enquanto aquelas que eram notas ou especificação de página foram adaptadas ao texto.

Só mais uma coisa...

Esse tipo de conteúdo é inédito na comunidade científica internacional e mais ainda em língua portuguesa. Adaptá-lo ao leitor brasileiro foi um trabalho verdadeiramente árduo. Por isso, considere apoiar o nosso projeto de divulgação científica, o único a tratar desse e de outros temas em toda a América do Sul. Clique no coração!

Resumo
“Criacionismo cognitivo” é um termo que designa a rejeição ideologicamente motivada de conceitos vindos da psicologia diferencial ou genética comportamental. Vários autores compararam essa prática ao criacionismo da Terra jovem, mas os paralelos entre os dois ainda não foram previamente submetidos a uma comparação aprofundada — até agora. Além de ambas as posições basearem-se em um conjunto de necessidades psicológicas semelhantes, as duas desenvolveram visões de mundo epistemologicamente parecidas ao interpretarem as evidências de acordo com conclusões prévias. Essa reversão da metodologia científica leva tanto criacionistas da Terra jovem quanto criacionistas cognitivos a rejeitarem várias conclusões científicas bem estabelecidas devido ao seu potencial em contradizer as posições que ambos os grupos tomaram a priori como verdade. Ambas as visões também tendem a se basear em explicações não parcimoniosas e ad hoc, que geralmente são incapazes de fazer predições seguras sobre o futuro. Os riscos apresentados pelo criacionismo cognitivo, junto de suas implicações potenciais para a educação científica, serão discutidos.

Palavras-chave: religião; criacionismo; inteligência; genética comportamental; teoria da ferradura; filosofia da ciência



1. Introdução

A negação da ciência existe tanto na direita quanto na esquerda política. Dois estudos, de Ditto et al. e Washburn e Skitka, descobriram que conservadores e progressistas têm quase a mesma probabilidade de negar conclusões científicas que entrem em conflito com suas visões de mundo.[1][2] No entanto, esses estudos não examinaram se a negação da ciência é psicológica e epistemologicamente semelhante nos dois polos políticos. Este artigo comparará as bases psicológicas, as abordagens e as táticas de dois tipos de negação da ciência — o criacionismo da Terra jovem e o conjunto de crenças conhecido como “criacionismo cognitivo” — que são, respectivamente, mais difundidos na direita política e na esquerda.

1.1. Definindo o Criacionismo Cognitivo e o Criacionismo da Terra Jovem
Neste artigo, estarei usando o termo “criacionismo cognitivo” para duas noções relacionadas: a rejeição de conceitos amplamente aceitos da genética comportamental ou psicologia diferencial, e a rejeição de certas hipóteses associadas a este campo (amplamente aceitas ou não) a priori em bases morais em vez de empíricas. O termo “criacionismo cognitivo” foi cunhado por Michael Shermer para fazer menção a um conjunto de crenças similares, porém mais restritas: que as forças evolutivas moldaram a humanidade apenas abaixo do pescoço, enquanto nossas mentes são tabuas em branco controladas por influências culturais e sociais.[3] Termos semelhantes são criacionismo progressista[4] e novo criacionismo[5], que se referem à rejeição moralmente fundamentada das teorias sobre a influência dos genes nas habilidades humanas e no comportamento.

O termo de Shermer é preferível a “criacionismo progressista” e “novo criacionismo”, pois é mais precisamente descritivo do que os outros dois. Em primeiro lugar, nem todos os defensores desse ponto de vista podem ser enquadrados como progressistas — por exemplo, Jerry Bergman (discutido na Seção 3.1) defendeu algumas ideias criacionistas cognitivas, mas é um cristão fundamentalista. Também é incorreto referir-se a esse conjunto de pontos de vista como “novo”, já que o conceito da mente como uma tabula rasa remonta a filósofos pré-darwinianos, como John Locke e Jean-Jacques Rousseau.[6]

É amplamente aceito em psicologia que a variação nas pontuações de QI entre os indivíduos tem um componente genético significativo.[7][8][9] O livro-texto padrão Psychology (8ª ed.) fornece o seguinte resumo:

Todo procedimento para avaliar a herdabilidade envolve suposições que podem não ser totalmente verdadeiras, portanto, qualquer coeficiente de herdabilidade deve ser considerado apenas uma estimativa aproximada. Mas os estudos sugerem, em geral, que as diferenças genéticas são responsáveis por cerca de 30 a 50 por cento da variância de QI entre as crianças e por consideravelmente mais de 50 por cento da variância de QI entre adultos nas populações que foram estudadas. (McGue et al., 1993; Nisbett et al., 2012).[10]

Embora a contribuição genética para a variação individual nas pontuações de QI seja bem estabelecida, não há consenso sobre por que as pontuações médias de alguns grupos étnicos são maiores ou menores do que os de outros, e se essas diferenças grupais incluem ou não um componente genético.[11][12][13] Portanto, “criacionismo cognitivo” ou termos semelhantes não devem ser aplicados a estudiosos como James Flynn e Jelte Wicherts, que argumentaram que as diferenças de grupo nas pontuações de QI são causadas pelo ambiente,[14][15] já que essa posição é compatível com o estado atual das evidências da psicologia e da genética. Neste artigo, o termo “criacionismo cognitivo” é usado exclusivamente para negar a ciência psicológica estabelecida, como negar que os genes têm um efeito na variação individual da habilidade cognitiva, bem como para rejeitar hipóteses em bases morais em vez de empíricas.

O criacionismo da Terra jovem (CTJ) é a crença de que Deus criou o mundo mais ou menos em sua forma atual em algum momento dos últimos 10.000 anos, como é sugerido por uma leitura literal dos primeiros capítulos do livro de Gênesis. O ano mais comumente alegado pelos criacionistas da Terra jovem para a criação do universo é 4004 aC, com base em um cálculo feito a partir das genealogias da Bíblia pelo bispo do século 17 James Ussher.[16] Outros princípios dessa visão incluem que Adão e Eva foram um par de pessoas reais, de quem toda a humanidade descende; que o dilúvio de Noé foi um evento real que cobriu toda a Terra; e que na medida em que a especiação é possível, ela não pode ocorrer além dos limites de certas categorias biológicas conhecidas como tipos criados ou “baramins”.[17] Por exemplo, humanos e outros primatas são considerados baramins separados; consequentemente, os criacionistas da Terra jovem consideram que é possível que duas espécies de primatas compartilhem um ancestral comum, mas não que os humanos compartilhem um ancestral comum com os primatas.

Os termos “criacionismo” e “design inteligente” às vezes são usados de maneira indiscriminada, e há uma sobreposição significativa nos argumentos empregados na defesa de ambas as visões, mas os dois não são idênticos. O criacionismo tradicional postula que o relato da criação dado no livro de Gênesis é historicamente preciso, e que todas as partes da Bíblia são a Palavra de Deus claramente escrita.[18] (“Claramente escrita” significa que o contexto textual sozinho deve determinar como ele é lido, sendo ele considerado literal a menos que o próprio texto apresente uma razão para que se pense o contrário.) Por outro lado, o objetivo do movimento do Design Inteligente (DI) é argumentar que a vida teve algum tipo de desenhista, geralmente sem especificar a natureza exata do desenhista. Embora o apoio ao DI venha principalmente da direita religiosa, os proponentes do DI possuem uma ampla variedade de crenças religiosas, incluindo algumas não-cristãs.[19] Ao contrário do movimento CTJ, o movimento DI geralmente não apresenta argumentos para a existência literal de Adão e Eva, a ocorrência de um dilúvio global ou uma Terra jovem.

É o CTJ, não o DI, que tem mais em comum com o criacionismo cognitivo. Outros pesquisadores que traçaram analogias entre os dois pontos de vista se concentraram em duas semelhanças: muitos adeptos do criacionismo cognitivo não aceitam que o comportamento humano complexo esteja sujeito a forças evolutivas, e a maioria deles rejeita conclusões científicas porque essas conclusões entram em conflito com suas convicções políticas, assim como os criacionistas da Terra jovem rejeitam a teoria da evolução porque ela entra em conflito com suas crenças religiosas. No entanto, as semelhanças entre essas duas visões de mundo são muito mais profundas, como será mostrado nas próximas duas seções.

2. O Básico do Criacionismo Cognitivo

2.1. Plano de fundo
A variação na tendência em ser religioso é moderadamente hereditária, com a porção da variância atribuível a fatores genéticos aumentando de 12% na adolescência para 44% na idade adulta.[20] Na Malásia, nos Estados Unidos e em várias nações europeias, a religiosidade está positivamente correlacionada com a fertilidade, sugerindo que, ao longo do tempo, esses países apresentam uma tendência genética de maior religiosidade.[21][22] Apesar disso, a religiosidade da maioria dos países ocidentais diminuiu rapidamente desde o início do século 21. Entre 2009 e 2019, a parcela de americanos não identificados como pertencentes a alguma religião aumentou de 17% para 26%, ao mesmo tempo em que houve um declínio correspondente em todas as denominações cristãs.[23] Essas duas linhas contrastantes de dados sugerem que, embora a religiosidade tenha sofrido um declínio, o mesmo provavelmente não se aplica aos nossos instintos subjacentes à religiosidade, pois as variantes genéticas que predispõem os indivíduos à religião se tornaram mais comuns entre as populações estudadas.

As religiões existem para atender várias das nossas necessidades psicológicas: particularmente a necessidade de encontrar sentido na vida, a necessidade de um senso de controle (tanto o controle do mundo quanto o autocontrole) e a necessidade de definir uma comunidade com um conjunto compartilhado de crenças.[24] Jon Shields sugeriu que, nos tempos modernos, muitas pessoas na esquerda política buscam a satisfação dessas e de outras necessidades não nas religiões tradicionais, mas no campo político.[25] A hipótese de Shields é capaz de explicar a relação paradoxal entre as influências genéticas na religiosidade e a própria religiosidade: o resultado dessa tendência genética pode ter sido que a política assumisse cada vez mais elementos religiosos, mesmo com o declínio da popularidade das religiões tradicionais.

A incorporação de elementos religiosos na política de esquerda foi examinada por James Lindsay e Mike Nanya, que concluem que a política de identidade adotada pela posição representa “uma estrutura quase religiosa que, a partir de um paradigma notavelmente diferente, atende às mesmas necessidades humanas que as religiões atendem”. Os aspectos religiosos dessa estrutura incluem a formação de uma tribo moral, a adoção de uma mitologia social para explicar o mundo (na qual a estrutura da sociedade é moldada pelo conflito entre grupos definidos por raça, gênero e orientação sexual), um foco em uma busca interior pelo reconhecimento de suas más ações inconscientes ou privilégios não reconhecidos, e a importância de demonstrar publicamente o compromisso com o sistema de crenças. O aspecto religioso do esquerdismo mais pertinente ao presente artigo é o que Lindsay e Nanya descrevem como a adoção de crenças sagradas ou sacrossantas:

Crenças sagradas são aquelas que, por razões morais, foram removidas do reino do ceticismo e da dúvida, pois são vistas como importantes demais para serem sujeitas a essas influências corrosivas. Em vez disso, as crenças sagradas são efetivamente postas de lado frente à investigação racional, o que resulta na expectativa de que sejam compreendidas mitologicamente, em vez de literal, técnica ou cientificamente.[26]

Nem o cristianismo e nem a esquerda política são inerentemente anticientíficos. Numerosas autoridades cristãs argumentaram que a teoria da evolução é cientificamente correta e compatível com a fé cristã — notadamente, os dois papas mais recentes,[27][28] bem como os cerca de 15.500 clérigos cristãos que assinaram uma carta sobre o assunto.[29] Da mesma forma, em Tabula Rasa, Steven Pinker argumenta que as descobertas sobre uma base genética das habilidades e do comportamento humano não precisam ameaçar os ideais de esquerda, como o de direitos iguais para todos, visto que esses valores morais existem independentemente de quaisquer conclusões empíricas sobre psicologia ou genética.[30] No entanto, para alguns cristãos e alguns esquerdistas, essas garantias não são suficientes, e certas ideias são consideradas fundamentalmente incompatíveis com suas visões de mundo.

2.2. A Teoria Criacionista do Conhecimento
O objetivo das garantias dadas por Pinker, pelo Papa Bento XVI e pelo Papa Francisco é o de encorajar cristãos e aqueles de orientação política de esquerda a permitir que o método científico prossiga desimpedido, mesmo nos casos em que são produzidos resultados que consideramos religiosa ou socialmente problemáticos. No entanto, quando as convicções religiosas ou políticas de uma pessoa são suficientemente fortes, ou sua devoção ao método científico é suficientemente fraca, ela pode não estar disposta a aceitar resultados que desafiem sua religião ou política. A psicologia por trás desse processo foi examinada por Matteo Colombo, Leandra Bucher e Yoel Inbar, que descobriram que as pessoas têm menos probabilidade de aceitar conclusões científicas se considerarem essas conclusões moralmente ofensivas.[31]

O estudo de Colombo et al. sugere que os humanos em geral são vulneráveis ao efeito descrito, mas que é um objetivo do método científico evitar esse efeito o máximo possível, já que a veracidade de uma ideia não é dada a partir da possibilidade de ela ser ou não moralmente ofensiva. Este princípio da ciência foi descrito por Hans Eysenck: “Podemos não gostar dos fatos, mas eles são teimosos; os fatos são produtos da natureza, e os cientistas são meramente os mensageiros que buscam e transmitem as mensagens que a natureza tem para nós”.[32] Por outro lado, a ideia central por trás do CTJ e do criacionismo cognitivo, a qual me refiro como a “teoria criacionista do conhecimento”, é a de que o processo psicológico descrito por Colombo et al. deve ser abraçado em vez de evitado. Em vez de buscar o conjunto de modelos mais consistente com os dados empíricos, a teoria criacionista do conhecimento parte do ponto de que é preciso começar com um conjunto inalterável de conclusões e, em seguida, buscar maneiras de interpretar os dados que correspondem a essas conclusões. Nesse aspecto, tem-se o inverso exato do método científico, que normalmente opera tirando inferências da observação e, em seguida, testando se essas hipóteses podem ser falsificadas por novos resultados. Answers in Genesis, a organização criacionista mais proeminente nos Estados Unidos, descreveu a teoria criacionista do conhecimento em sua declaração de fé:

Por definição, nenhuma evidência aparente, percebida ou reivindicada em qualquer campo, incluindo história e cronologia, pode ser válida se contradisser o registro das escrituras. De importância primária é o fato de que as evidências estão sempre sujeitas à interpretação por pessoas falíveis que não possuem todas as informações.[33]

Entre progressistas seculares, a expectativa de que as hipóteses empíricas devem corresponder a uma visão de mundo predeterminada é descrita por Bo e Ben Winegard como “Meliorismo Igualitário Paranoico” (MIP). De acordo com esse modelo, as pessoas que consideram a igualdade racial ou de gênero como um ideal fundamental podem ser instintivamente hostis às teorias científicas percebidas como uma ameaça a esses ideais.[34] Assim como as ameaças percebidas ao cristianismo, uma teoria atacada com base no MIP não representa necessariamente uma ameaça aos ideais de igualdade; basta que seja percebida como uma ameaça. A maneira pela qual o MIP pode ser aplicado a uma hipótese foi descrita pelo geneticista comportamental Eric Turkheimer:

Por que não aceitamos os estereótipos raciais como hipóteses razoáveis, que podem ser consideradas até que sejam cientificamente provadas falsas? Elas são ofensivas justamente porque violam nossa intuição quanto ao equilíbrio entre o que é inato e o que é autodeterminado nas qualidades morais e culturais do ser humano […] é uma questão de princípio ético que a realização individual e cultural não esteja ligada aos genes da mesma forma que a aparência do nosso cabelo.[35]

Turkheimer deu uma explicação semelhante no obituário de 2012 de J. Philippe Rushton, um polêmico psicólogo mais conhecido por sua pesquisa sobre raça e inteligência:

Rushton detinha muito conhecimento sobre a inteligência humana e defendeu sua posição reunindo argumentos racionais baseados em dados empíricos. Seu conhecimento e seu empirismo lhe renderam um lugar legítimo na mesa científica. Ele não era excêntrico. No entanto, não há como escapar do fato de que a posição defendida por ele era literalmente racista e, em minha opinião, nenhum recurso a dados empíricos pode resgatá-la de suas dúbias origens e destrutivas consequências.[36]

Em suma, esse argumento postula que algumas hipóteses devem ser rejeitadas porque ofendem nossos princípios morais e que, quando uma hipótese é rejeitada por esse motivo, “nenhum recurso a dados empíricos pode resgatá-la”. Um caso em que essa perspectiva foi usada para um efeito mais específico ocorreu durante a controvérsia de 2013 quanto aos escritos de Jason Richwine sobre QI e imigração, em que 23 grupos de estudantes da Universidade de Harvard prepararam uma declaração conjunta denunciando a tese de doutorado de Richwine sobre o assunto. A declaração argumentou:

Mesmo se tais alegações tivessem mérito, a Escola Kennedy não pode apoiar eticamente essa dissertação, cujo resultado final só pode ser o de promover a discriminação sob o disfarce de discurso acadêmico.[37]

Nathan Cofnas revisou muitos outros casos em que comunicadores científicos e acadêmicos argumentaram que as teorias relacionadas à hereditariedade e inteligência podem e devem ser rejeitadas devido às suas implicações sociais ou morais.[38] Em um nível epistemológico, esses argumentos convergiram no mesmo ponto de vista que aquele descrito na declaração de fé do Answers in Genesis: que algumas hipóteses devem ser julgadas com base em sua compatibilidade com a cosmovisão de alguém, independentemente de quais evidências possam existir. Às vezes, como no exemplo de Richwine, é afirmado explicitamente que as hipóteses devem ser rejeitadas por esse motivo, mesmo que, de outra forma, tenham mérito. Sutton et al. descreveram o processo cognitivo por trás dessa atitude: “Nossa proposta central é que as pessoas não apenas duvidam dos fatos produzidos por algumas investigações científicas, como também os percebem como uma ameaça aos interesses coletivos. Por sua vez, essa percepção motiva respostas cognitivas e comportamentais que servem para neutralizar a ameaça”.[39]

A precisão literal do Gênesis e a inexistência de diferenças hereditárias na habilidade cognitiva média entre grupos raciais ou étnicos são exemplos do que Lindsay e Nanya se referem como ideias sagradas: ideias que, por definição, não podem ser contestadas por dados empíricos. A convergência da extrema direita e da extrema esquerda em diferentes conjuntos de ideias sagradas pode ser explicada pelo que Jean-Pierre Faye chama de “teoria da ferradura”, em que as posições da extrema esquerda e da extrema direita são mais semelhantes entre si do que em relação ao centro político.[40]

3. Efeitos de Cosmovisões Semelhantes

3.1. O Argumento das Consequências e da História
A ideia central subjacente ao criacionismo cognitivo e ao criacionismo da Terra jovem é que as ideias são aceitas ou rejeitadas com base em sua compatibilidade com a visão de mundo da pessoa, mas essa base epistemológica nem sempre é apresentada de forma tão direta como foi por Answers in Genesis, Turkheimer e a declaração de Harvard. Mais frequentemente, tal argumento é apresentado de forma indireta, por meio da afirmação de que a aceitação da hereditariedade ou evolução corre o risco de minar a moral da sociedade. Entre os criacionistas tradicionais, esse tipo de argumento foi mais famoso por William Jennings Bryan durante sua declaração final no Julgamento de Scopes de 1925, no qual ele afirmou que “Nossa quinta acusação da hipótese evolucionista é que, se levada a sério e tida como base de para uma filosofia de vida, eliminaria o amor e levaria o homem de volta à luta de dentes e garras”. Ele passou a descrever como a aceitação da evolução aumentou a popularidade do darwinismo social, bem como a teoria da evolução foi usada para justificar a guerra e a promiscuidade sexual.[41] Desde a época de Bryan, o declínio na popularidade do darwinismo social forçou esses tipos de argumentos baseados na moralidade a confiar cada vez mais em exemplos históricos. Uma variedade de livros de criacionistas da Terra jovem e proponentes do design inteligente adotaram essa abordagem, incluindo A Plantação de Darwin de Ken Ham e Charles Ware[42] e De Darwin a Hitler de Richard Weikart[43], com O Efeito Darwin de Jerry Bergman sendo provavelmente o exemplo mais completo. Bergman descreve como a teoria da evolução tem sido historicamente utilizada como justificativa para diversos movimentos políticos totalitários, bem como como justificativa para o classismo e o sexismo. A maior atenção é dada à sua influência no movimento eugênico do início do século XX, junto com a discriminação racial que também prevalecia naquela época. Bergman argumenta que a evolução não foi meramente mal utilizada para esses propósitos; em vez disso, ele acredita, esses tipos de ideologias são considerados uma conclusão lógica decorrente de características da própria teoria evolucionista.[44] Entre os defensores do criacionismo cognitivo, o argumento paralelo é que a aceitação ou a pesquisa sobre a herdabilidade da inteligência corre o risco de causar preconceito racial ou de classe, especialmente se essa pesquisa envolver diferenças de grupo. Um exemplo típico desse argumento foi feito em um artigo de 2015 por Dorothy Roberts:

A crença de que a inteligência é hereditária e pode ser prevista por testes legitimou hierarquias sociais injustas e justificou políticas sociais destinadas a mantê-las. Não há evidências de que os testes genéticos de inteligência sejam necessários ou ajudem a melhorar a educação de pessoas em circunstâncias sociais desfavorecidas. Ao contrário, a teoria genética da inteligência “eliminará todas as possibilidades de nutrição adequada para a inteligência de todos” e fornecerá uma justificativa para as próprias estruturas sociais que impedem a partilha equitativa dos recursos educacionais.[45]

Como o argumento de Bergman sobre os perigos da teoria da evolução, uma das principais linhas argumentativas vistas em Roberts sobre os perigos da pesquisa de inteligência é baseada na associação histórica dessa pesquisa com o racismo e a eugenia. Quase todos os ataques com base moral à pesquisa de inteligência incorporam esse argumento de alguma forma, incluindo A Ciência e a Política do Q. I. por Leon Kamin,[46] A Desilusão do Gene de Jay Joseph,[47] QI: Uma História Inteligente de uma Ideia Falha, de Stephen Murdoch,[48] e, mais notoriamente, A Falsa Medida do Homem, do biólogo de esquerda Stephen Jay Gould. Embora o argumento de Bergman seja que a aceitação da evolução levou a esses resultados sociais, Gould aponta a seta da causalidade na direção oposta, argumentando que a aceitação da inteligência como um traço mensurável e hereditário foi em si uma consequência do preconceito da sociedade.[49] Ao contrário da maioria dos livros de seus respectivos gêneros, tanto O Efeito Darwin quanto A Falsa Medida do Homem dedicam relativamente pouco espaço à relação percebida entre evolução ou QI e nazismo. No caso de Bergman, a razão para essa omissão é que ele separou um livro inteiro ao argumento de que o nazismo foi construído com base na teoria evolucionista.[50] Em A Falsa Medida do Homem, a discussão se limita a uma única nota de rodapé, citando (pp. 224–25) um artigo de 1941 alegando que os nazistas estavam “ofuscando” a América no uso de testes mentais. Um livro mais típico a esse respeito é QI: Uma História Inteligente de uma Ideia Falha, que dedica um capítulo de 20 páginas (pp. 119–38) ao argumento de que o teste de QI era uma parte importante das políticas de eugenia dos nazistas. Essa associação é um exagero em todos os livros que a afirmam, pois os testes mentais usados pelos nazistas eram bastante diferentes dos testes de QI usados em países de língua inglesa, os mesmos que foram banidos na Alemanha nazista devido a serem “judeus”.[51][52]

Nessa área, tem havido um certo grau de sinergia entre os argumentos de Gould e aqueles feitos por criacionistas da Terra jovem. Em A Falsa Medida do Homem, Gould dedica o terceiro capítulo à relação entre o volume do cérebro e a inteligência, argumentando que essa relação não existe, embora quase todas as pesquisas que ele critica tenham agora mais de 100 anos. Um argumento semelhante (pp. 51–52) é apresentado por Bergman em O Efeito Darwin com foco na pesquisa de Francis Galton, um dos mesmos pesquisadores criticados por Gould. Bergman e Gould argumentam que essa correlação não poderia existir porque alguns indivíduos com deficiência cognitiva tiveram cérebros grandes, enquanto alguns gênios tiveram cérebros que eram menores do que a média. A falha argumentativa aqui é que não se pode contestar uma correlação com contra exemplos individuais, e a existência de uma correlação entre a inteligência (medida por meio de testes de QI) e o volume do cérebro está bem estabelecida.[53][54][55] Esse argumento sobre o volume do cérebro foi inicialmente feito por Gould e mais tarde pegado emprestado por criacionistas da Terra jovem, mas esse tipo de empréstimo de argumentos também ocorreu na direção contrária. A antropóloga Holly Dunsworth argumentou que “o determinismo genético e biológico estão impregnados na imaginação popular” e que, como resultado, “a evolução está toda envolta na supremacia branca e em um patriarcado geneticamente destinado”. Ela propõe que, a fim de combater o “determinismo biológico” e promover ideias igualitárias, as aulas que ensinam a teoria da evolução devem colocar uma ênfase maior nas humanidades em vez de serem inteiramente sobre biologia e, em particular, devem “desmantelar ativamente o passado e o presente racista da evolução”.[56] O argumento de Dunsworth sobre os riscos atuais da teoria evolucionista é substancialmente o mesmo que o argumento feito anteriormente pelo criacionista da Terra jovem Tas Walker na Creation Ministries International, no qual Walker afirma que a teoria evolucionista inevitavelmente promove estereótipos racistas, e avisa seus leitores: “Não deixe que eles inconscientemente o transformem em um racista com seus sutis ícones evolutivos”.[57] Ao contrário de Walker e Bergman, Dunsworth não contesta a exatidão factual da teoria da evolução, mas seu argumento contra ela ser ensinada como uma conclusão direta do método científico também é paralelo às propostas anteriores de criacionistas e defensores do design inteligente de que as aulas de biologia devem incluir uma “análise crítica da evolução”,[58] ou incluir ressalvas nos livros de biologia, descrevendo a evolução como uma “teoria controversa”.[59]

Os casos paralelos de Bergman e Dunsworth são explicados pela teoria da ferradura. Embora esses dois autores tenham começado, respectivamente, de um ponto de vista de direita e de esquerda, a disparidade de seus pontos de vista os levou a um conjunto de conclusões semelhantes às do polo político oposto. Essa convergência ocorre porque quando a evidência é forçada a se conformar com uma visão de mundo predeterminada, algumas das mesmas ideias são percebidas como igualmente perigosas, quer essa visão de mundo venha da esquerda ou da direita religiosa. A ideia de que o volume do cérebro pode estar estatisticamente relacionado à inteligência, por exemplo, é percebida como perigosa pelos proponentes do criacionismo cognitivo porque é uma parte importante do argumento de que diferenças étnicas nas pontuações médias de QI têm uma base biológica,[60] e por criacionistas da Terra jovem porque a evolução de cérebros grandes como uma adaptação para uma maior inteligência foi uma das transições mais importantes na evolução dos humanos a partir de primatas ancestrais.[61] A prática de rejeitar qualquer linha de evidência que possa apoiar uma ideia proibida é examinada mais de perto em a próxima seção.

3.2. Exigências de Pureza e Efeito Dominó
Quando as ideias são aceitas ou rejeitadas com base em suas implicações religiosas ou sociais, há um efeito único não encontrado na maioria das áreas da ciência. Esse efeito é uma exigência de uma forma de pureza, segundo a qual não basta apenas rejeitar a própria ideia proibida. Também se espera que a pessoa rejeite qualquer outra ideia que seja percebida como associada a ela, e há várias opiniões sobre até que ponto essa associação se estende. Um caso desse efeito pode ser visto nas discussões do CTJ conhecido como Teoria da Recolonização. Como a maioria dos criacionistas da Terra jovem, os proponentes da Teoria da Recolonização geralmente acreditam que a Terra tem milhares de anos em vez de milhões ou bilhões, e que o dilúvio de Noé cobriu toda a Terra. No entanto, enquanto a explicação criacionista prevalecente para o registro fóssil é que a maior parte dele foi depositada pelo Dilúvio, a Teoria da Recolonização propõe que a sucessão no registro fóssil, em vez disso, representa a ordem em que as plantas e os animais recolonizaram o mundo após o Dilúvio ter tido fim.[62] A vantagem desse modelo sobre os modelos tradicionais de geologia do Dilúvio é que o registro fóssil contém muitas características que não podem ser facilmente explicadas como formadas durante um dilúvio global, como rachaduras de lama por dessecação e ninhos e ovos de dinossauros. Em vez de tentar explicar como essas características se formaram durante o Dilúvio, a Teoria da Recolonização aceita que elas foram formadas em um ambiente de deposição geológica semelhante ao que existe no presente.[63]

Todos os proponentes da Teoria da Recolonização consideram Gênesis uma história literal. No entanto, entre muitos dos proponentes do CTJ, o modelo ainda é considerado inaceitável porque depende muito de ideias da geologia mainstream. Essa objeção à Teoria da Recolonização é explicada em uma crítica do modelo pelos criacionistas Andy McIntosh, Steve Taylor e Tom Edmondson, que foi posteriormente citado por Answers in Genesis[64]:

Sua admissão de que a exegese bíblica não é a razão principal para a adoção de seu modelo do Dilúvio mostra como a linha de pensamento deles é fraca. Sua ciência está conduzindo a interpretação das Escrituras em vez do contrário. A partir dessa premissa não comprovada (e, em nossa opinião, falsa), eles constroem um modelo mais fiel à geologia do que às Escrituras.[65]

Um efeito intimamente relacionado está no que é conhecido como efeito dominó, pelo qual um evento pode causar vários outros em uma reação em cadeia. Muito poucas pessoas são capazes de se envolver no duplo pensamento de rejeitar uma hipótese por motivos sociais ou religiosos ao mesmo tempo que aceitam que a hipótese é empiricamente bem fundamentada. Mais frequentemente, quando uma hipótese é rejeitada por essas razões, todas as linhas de evidência para apoiá-la também devem ser rejeitadas. Como o suporte para uma hipótese pode vir de muitas áreas, essa prática pode resultar em uma rejeição em cascata das conclusões de muitos outros campos da ciência.

O efeito dominó explica por que as principais organizações CTJ rejeitam a existência de dinossauros emplumados. Answers in Genesis explica: “Embora não haja nenhuma razão bíblica particular para pensar que os dinossauros não tinham penas, permanecemos cautelosos porque a ideia é mais frequentemente apresentada em conjunto com a ideia de que os pássaros evoluíram dos dinossauros terópodes”.[66] Um caso mais inevitável de efeito dominó é encontrado no livro do criacionista Desembrulhando os Faraós, que rejeita o relato histórico padrão do antigo Egito.[67] Os criacionistas da Terra jovem rejeitam esse relato porque as histórias tradicionais do Egito remontam a mais de 7.000 anos atrás, pois isso contradiz a posição deles de que o próprio universo tem apenas cerca de 6.000 anos.[68]

A mesma abordagem, começando com a rejeição de uma ideia e depois atacando outras ideias vagamente associadas a ela, é adotada em um artigo de 2016 de David Gillborn. Nele, Gilborn ataca Robert Plomin, um geneticista comportamental que não escreveu quase nada sobre as causas das diferenças entre grupos raciais. Gilborn define a pesquisa de Plomin sobre a base genética da inteligência como uma estratégia de “inexplicidade racial”, que indiretamente avança ideias racistas sem mencionar raça:

É difícil exagerar a importância da ligação histórica entre as ideias raciais e as ideias de superioridade/inferioridade intelectual. Mesmo quando um discurso não menciona a raça de maneira explicita, essas ideias permanecem como parte vital da paisagem; o que Michael W. Apple chama de “presença ausente”.[69]

Descrevendo a pesquisa de Plomin e outros pesquisadores da inteligência, Gillborn subsequentemente conclui que “[o] padrão racista de oportunidades e realizações educacionais diferenciadas, que está codificado em suas visões, está enterrado na forma de letras pequenas, escondido da visão do leitor em geral”. Consequentemente, ele dá a seguinte instrução: “Os educadores críticos devem se adaptar rapidamente e interromper essa versão [do racismo] ou podemos descobrir que o racismo científico remodelou nossos sistemas educacionais sem nem mesmo mencionar a raça”.

A relação percebida da genética comportamental com a pesquisa racial provocou um caso de efeito dominó, um exemplo do qual pode ser visto no livro de 2014 de Robert Sussman, O Mito da Raça. O objetivo do livro de Sussman é tentar descredibilizar a pesquisa sobre raça e inteligência e, portanto, ele rejeita as conclusões da psicologia diferencial e da genética comportamental sobre a mensurabilidade e a base genética da inteligência humana.[70] No entanto, em um nível mais fundamental, a herdabilidade da inteligência é em si um aspecto da herdabilidade mais ampla da variação em traços psicológicos humanos.[71] Um dos estudos mais conhecidos sobre a herdabilidade geral da variação psicológica humana é o Estudo de Minnesota Sobre Gêmeos Idênticos Criados Separadamente, de Thomas Bouchard.[72] Sussman argumenta que a credibilidade de Bouchard também deve ser rejeitada. Como as discussões do CTJ sobre o Egito e os dinossauros emplumados, Sussman faz algumas críticas superficialmente empíricas ao estudo de Bouchard, mas ele também explica (p. 250) que sua razão subjacente para rejeitar as conclusões de Bouchard reside na ameaça percebida de que esses estudos possam potencialmente dar suporte às pesquisas sobre raça:

[…] Bouchard e seus pesquisadores usaram dados para argumentar a favor da preponderância da genética sobre o ambiente como a principal influência no comportamento. Embora a raça não tenha sido um foco no Estudo de Minnesota, é importante lembrar que o racismo científico moderno é baseado no argumento de que a maioria da variação humana em coisas como fisiologia, comportamento e inteligência são influenciadas biologicamente, não sendo determinadas ou influenciadas de qualquer forma importante pelo ambiente.

Seguindo o exemplo de Sussman, livros mais recentes criticando a “ciência racial” o fizeram atacando a genética comportamental de forma mais ampla. Em Superior: O Retorno da Ciência Racial, de Angela Saini, primeiro Thomas Bouchard e, em seguida, Robert Plomin são descritos como tendo herdado o “manto manchado” de Josef Mengele, o médico nazista de Auschwitz que é famoso por seus experimentos cruéis em humanos, especialmente em gêmeos.[73] Um argumento semelhante é apresentado por Gavin Evans em Superficial: Uma Jornada na Divisiva Ciência da Raça, que faz a transição direta de um resumo dos horríveis experimentos de Mengele à pesquisa de Plomin.[74] A esse respeito, esses acadêmicos antirracistas estão em desacordo com uma grande parte da academia, pois no campo da genética comportamental Plomin é uma figura completamente dominante — vários livros-texto padrão sobre genética do comportamento o incluem como autor, e ele tem um índice h de 161, com seus artigos tendo sido citados coletivamente mais de 110.000 vezes.[75]

Essa denúncia à genética comportamental levanta a questão de saber o que esses autores acreditam ser a verdadeira fonte de variação nas características psicológicas humanas. Além de suas críticas a Bouchard e Plomin, o livro de Saini expressa relativamente pouca opinião sobre isso, exceto para dizer (p. 221) que “[a] questão de saber se a cognição, como a cor da pele ou altura, tem uma base genética, é uma das mais controversas em biologia humana”. Sussman faz (p. 172) alguns comentários gerais sobre a importância da cultura na determinação do comportamento, como “a cultura define a biologia e não o contrário”, mas em momento algum ele entra em detalhes sobre como ele acredita que cultura e biologia interagem uma com a outra ou tentar quantificar o tamanho relativo das contribuições de cada lado, como comumente fazem os psicólogos diferenciais e geneticistas comportamentais. Em uma crítica negativa de A Falsa Medida do Homem, Franz Samelson apontou a mesma falta de especificidade no ataque de Gould à “reificação” da inteligência. Samelson escreve que “Gould nunca nos diz diretamente qual é sua própria, mais adequada e não reificada concepção de inteligência”.[76] A razão para essa abordagem é explicada em uma menção ao livro de Lewontin, Rose e Kamin, Não Está em Nossos Genes:

Os críticos do determinismo biológico são como membros de uma brigada de bombeiros, constantemente convocados no meio da noite para extinguir o último incêndio, sempre respondendo a emergências imediatas, mas sempre sem tempo para traçar planos reais em relação a um edifício verdadeiramente à prova de fogo. […] Os críticos do determinismo parecem, então, estar condenados a constantes negações, enquanto leitores, audiências e alunos reagem com impaciência à perpétua negatividade.[77]

Jonathan Kane discutiu a falta semelhante de propostas positivas entre os criacionistas da Terra jovem e seus argumentos sobre a origem das aves, que geralmente atacam as pesquisas existentes sem fazer qualquer tentativa de propor uma explicação alternativa para os dados fósseis. A crítica de Kane a esse aspecto do criacionismo da Terra jovem aplica-se igualmente bem ao aspecto equivalente do criacionismo cognitivo: “Essa é uma atitude destrutiva porque, em seu nível mais básico, a ciência trata de criar um modelo para explicar o que você observa, e então testa se as previsões do modelo correspondem à realidade. Se uma pessoa não está disposta a propor um modelo testável, ela não está usando o método científico”.[78] O filósofo da ciência Imre Lakatos afirma que uma teoria deve ser considerada falsa se e somente se outra teoria com um maior poder explicativo do que a teoria original for proposta”. Lakatos escreve que “o elemento crucial na falsificação é se a nova teoria oferece qualquer novidade, informações adicionais  em comparação com sua predecessora, e se algumas dessas informações adicionais são corroboradas”.[79] (Ênfase no original.) No entanto, quando uma teoria é rejeitada com base na teoria criacionista do conhecimento e/ou no efeito dominó, muitas vezes não há qualquer outra teoria específica oferecida para ocupar o lugar. Como resultado, os argumentos apresentados tanto pelo CTJ quanto pelo criacionismo cognitivo tendem a se basear muito mais em atacar os modelos dos outros do que em apresentar seus próprios modelos testáveis para explicar os dados.

3.3. Falta de Parcimônia
Parcimônia é o princípio de que uma teoria não deve ser mais complexa do que o necessário para explicar os dados. O princípio foi articulado de maneira mais famosa por Guilherme de Ockham: Frustra fit per plura, quod potest fieri per pauciora, que significa “Faz-se inutilmente com muitas coisas o que se pode fazer com poucas”.[80] Qualquer corpo de evidência terá um número indefinidamente grande de explicações não parcimoniosas, mas geralmente há apenas uma ou algumas explicações que são parcimoniosas. Devido à sua relativa escassez, desenvolver uma explicação parcimoniosa para um conjunto de dados depende de fazer um esforço específico para a parcimônia, de modo que, se uma conclusão for escolhida a priori e a evidência for forçada a se conformar a essa conclusão, os modelos resultantes serão muito improvavelmente parcimoniosos. 

Entre os criacionistas da Terra jovem, um exemplo desse resultado pode ser visto em sua explicação dada às medições da idade geológica produzida por datação radiométrica, através de um projeto desenvolvido por eles e conhecido como Radioisótopos e a Idade da Terra (RIT). O projeto foi um programa de pesquisa de oito anos do Institute for Creation Research e da Creation Research Society, cujas conclusões foram publicadas em dois grandes volumes em 2000 e 2005, incluindo um volume mais curto.[81] A proposta central subjacente à maioria dos modelos RIT é que, a fim de contabilizar os dados radiométricos mostrando idades na casa dos milhões ou bilhões de anos dentro de uma escala de tempo de uma Terra jovem, as taxas de decaimento nuclear, dizem eles, têm flutuado ao longo do tempo devido a alterações nas constantes físicas do universo e que o decaimento da maioria dos isótopos foi acelerado por milhões de vezes durante o dilúvio de Noé.[82]

No entanto, devido à radiação letal que teria sido produzida pela decomposição acelerada do carbono-14 dentro dos corpos das pessoas, o RIT propôs que a taxa de decomposição desse isótopo particular permaneceu constante. Em vez disso, as datas produzidas pela datação por carbono-14 são propostas para representar grandes flutuações na quantidade desse isótopo anteriormente presente no ambiente.[83] Para explicar o problema da radiação produzida pelo potássio-40, outro radioisótopo encontrado no corpo humano e cujo decaimento o RIT acredita ter sido acelerado, eles propuseram que o ambiente pré-diluviano não continha qualquer potássio radioativo e, portanto, as pessoas não começaram a incorporar esse isótopo em seus corpos até depois que o dilúvio acabou e as taxas de decaimento terem voltado a níveis normais. Por fim, com o objetivo de lidar com a enorme quantidade de calor que o decaimento acelerado teria produzido, o RIT propôs um modelo de “resfriamento cosmológico” envolvendo uma rápida expansão do universo.[84]

Emily Willoughby demonstrou várias maneiras pelas quais esse modelo não é adequado para explicar todos os dados. Um problema é que o Sol contém proporcionalmente muito menos material radioativo do que a Terra, então se o mecanismo de resfriamento cosmológico proposto pelo RIT fosse adequado para explicar uma suposta compensação na quantidade de calor produzida pelo decaimento radioativo acelerado na Terra, ele também teria resfriado o Sol muito abaixo de sua temperatura normal, fazendo com que a camada emissora de luz da estrela se extinguisse. Além disso, o argumento do RIT de que o ambiente pré-diluviano não continha potássio radioativo é contradito por dados geológicos. De acordo com o modelo RIT, os sedimentos pré-cambrianos são aqueles que foram depositados antes do Dilúvio, mas quantidades mensuráveis de potássio radioativo são regularmente encontradas em rochas sedimentares pré-cambrianas, indicando que o mesmo potássio radioativo estava presente no ambiente onde esses sedimentos foram depositados.[85] À medida que a comunidade criacionista da Terra jovem atualiza seu modelo de decaimento nuclear para levar em consideração críticas como a de Willoughby, tudo indica que, com o tempo, o modelo tenderá a se tornar mais complicado do que já é.

Como as várias linhas de evidência geológica de que a Terra tem bilhões de anos, a genética comportamental contém várias linhas separadas de dados que apontam para uma conclusão tão sólida quanto: que os genes respondem por cerca de 50% da variação na inteligência humana, chegando a um máximo de 60%–80% no início da idade adulta. Essa conclusão — que se refere às diferenças entre os indivíduos, não entre as médias dos grupos — é apoiada por estudos da similaridade de gêmeos monozigóticos criados separadamente,[86] estudos comparando o grau de similaridade entre gêmeos monozigóticos e dizigóticos criados juntos,[87] estudos de filhos adotivos e irmãos[88] e análises de características complexas de todo o genoma de indivíduos não relacionados.[89][90] A conclusão de que a inteligência tem uma base parcialmente genética oferece uma explicação parcimoniosa para todas essas linhas de dados e, portanto, é a explicação principal apresentada em livros de psicologia diferencial, inteligência humana e genética comportamental.[91][92][93]

Em seu livro de 2017, Genes, Cérebros e o Potencial Humano, Ken Richardson apresenta uma explicação para esses dados do ponto de vista de que as diferenças individuais nos traços psicológicos humanos carecem de qualquer base genética. Richardson argumenta que o grau de similaridade entre gêmeos monozigóticos e dizigóticos não pode isolar os efeitos genéticos em traços psicológicos porque gêmeos monozigóticos são mais propensos a compartilhar uma placenta no útero e também porque seus pais e amigos são mais propensos a tratá-los de forma semelhante em relação a gêmeos idênticos criados separadamente. Ele argumenta que esses dados são inválidos porque os pares de gêmeos não foram separados adequadamente — em alguns casos, eles foram separados na primeira infância em vez de no nascimento, e em outros casos eles permaneceram em contato um com o outro após a adoção.[94] Com relação a outros estudos de adoção, ele argumenta (pp. 53–56) que a semelhança de crianças adotadas com seus parentes biológicos é causada por uma série de fatores, incluindo o estresse de serem adotados, as expectativas de seus pais adotivos e a tendência das agências de adoção em colocar crianças em famílias de classes sociais semelhantes àquelas de seus pais biológicos. Finalmente, ele explica (pp. 60–62) os resultados produzidos por análises de características complexas abrangentes de genoma (genome-wide complex trait analysis, ou GCTA. N. do T.), argumentando que as pessoas que pertencem à mesma classe social são mais propensas a serem geneticamente semelhantes, o que significa que o método GCTA “parece ser bom apenas para redescrever a história da estrutura de classes da sociedade”.

Em sua discussão sobre os estudos de gêmeos, Richardson inicialmente não especifica se acredita que a semelhança entre gêmeos monozigóticos seja inteiramente o resultado dos fatores de confusão em potencial mencionados por ele. No entanto, na conclusão do livro, ele esclarece (pp. 66–69) que realmente acredita que suas críticas explicam inteiramente esses dados: “Os dados — principalmente dos estudos de gêmeos — são facilmente explicados pela clara falsidade de tais suposições”. Ele faz uma afirmação (p. 342) absolutista semelhante sobre o que é medido pelos testes de QI: “As pontuações de QI, então, são meramente uma espécie de redescrição da distribuição do poder social, com suas consequências para os pensamentos, sentimentos, a autoconfiança das pessoas e assim por diante”.

Apesar da complexidade do conjunto de explicações de Richardson, elas são, como o modelo de decaimento nuclear criacionista Radioisótopos e a idade da Terra, ainda inadequadas para explicar todos os dados. Richardson não oferece (p. 101) uma explicação para os casos em que gêmeos monozigóticos foram erroneamente classificados por seus pais como dizigóticos, ou vice versa, embora ainda possuam um nível de similaridade consistente com estudos de gêmeos cujos pais os classificaram corretamente.[95] Ele também não tenta explicar casos em que os resultados dos estudos com gêmeos foram corroborados por estudos que correlacionaram similaridade psicológica com outros tipos de parentesco, como entre irmãos, meio-irmãos e entre pais e filhos.[96][97] Por último, em sua discussão sobre a possível confusão ambiental dos estudos com gêmeos, Richardson não menciona que na maior meta-análise sobre esse tipo de confusão o efeito apontado por ele foi considerado muito pequeno, e que havia apenas uma característica psicológica — neuroticismo — para o qual existe um efeito substancial.[98] Como no modelo RIT sobre a decaimento nuclear, explicar essas linhas adicionais de dados exigiria um modelo ainda mais complexo do que o proposto por Richardson.

A natureza convoluta dos argumentos dados pelo RIT e por Richardson reflete outro paralelo básico entre o criacionismo da Terra jovem e o criacionismo cognitivo: ambos os pontos de vista dependem fortemente de explicações ad hoc que não são generalizáveis para qualquer princípio subjacente. Essa é uma característica do que Lakatos descreve como uma linha de pesquisa “degenerada”. Na visão de Lakatos, um programa de pesquisa bem-sucedido deve fazer mais do que simplesmente oferecer uma explicação para os dados atuais — ele deve fazer previsões novas e arriscadas, e essas previsões devem acabar sendo consistentes com descobertas futuras.[99] No caso do RIT, seu modelo de difusão de hélio em cristais de zircão foi capaz de predizer resultados específicos à área escolhida para experimentos, mas não teve validade preditiva em qualquer outra área.[100] O mesmo problema se aplica à teoria de que a inteligência ou outras características psicológicas não têm uma base genética. Devido à sua dependência de explicações ad hoc para explicar cada linha de dados, essa teoria tem falhado consistentemente em prever resultados futuros, enquanto as previsões feitas pela genética comportamental têm geralmente sido bem-sucedidas.[101]

3.4. Argumentos Pós-Modernistas
É difícil resumir concisamente os princípios do pós-modernismo, que constituem um grande conjunto de crenças em vez de uma única cosmovisão. No entanto, o mais relevante para o presente artigo são as perspectivas pós-modernas da ciência, que consideram que o método científico represente não uma busca pela verdade objetiva, mas uma forma de construir pontos de vista baseados em pressupostos culturais. Em uma análise crítica das visões pós-modernas sobre a ciência, Paul Gross e Norman Levitt oferecem o seguinte resumo:

Embora as críticas de esquerda à ciência não tenham um centro, nenhuma axiomática fundamental, algumas perspectivas mais amplas podem ser identificadas. Sociólogos e teóricos sociais, incluindo alguns marxistas, tendem a produzir o que pode ser chamado de análises “construtivistas culturais”, vendo o conhecimento científico como histórica e socialmente situado e codificando, de maneiras não reconhecidas, os preconceitos sociais prevalecentes. As versões mais fortes e agressivas dessas teorias veem a ciência como um produto totalmente social, um mero conjunto de convenções geradas pela prática social.[102]

Muitas dessas visões sobre o método científico são inspiradas pelo influente livro de Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas. No livro, Kuhn argumenta que a ciência progride através de uma série de mudanças de paradigma, com cada novo paradigma baseado nas crenças e práticas sociais de um determinado tempo e lugar. Mais significativamente, Kuhn argumenta que a realidade não é diretamente cognoscível, pois os fatos científicos não podem ser compreendidos independentemente do paradigma do qual fazem parte. Kuhn se refere a esse princípio como a “carga teórica” dos dados.[103]

Essa visão da ciência é atraente para aqueles que subscrevem a teoria criacionista do conhecimento, pois pode obscurecer a incapacidade das teorias degeneradas de fazer previsões precisas. Ken Ham, o presidente da Answers in Genesis, invocou o conceito da carga teórica dos dados como um argumento de que não existe evidência objetiva para a teoria da evolução:

Meu ponto é que se nós, cristãos, realmente entendêssemos que todas as evidências são realmente interpretadas com base em certas pressuposições, então não ficaríamos nem um pouco intimidados pelas supostas “evidências” evolucionistas. No fim das contas, não é uma questão de quem está do lado dos maiores e melhores fatos. Precisamos entender que não existem fatos brutos — todos os fatos são interpretados.[104]

Answers in Genesis frequentemente se refere a essas pressuposições com os termos “óculos evolucionista” ou “óculos bíblico”, argumentando que eles mudam a aparência do mundo inteiro de forma semelhante a como usar um conjunto diferente de óculos.[105][106] Essa ideia tem algumas implicações importantes para a visão de mundo criacionista tradicional. Se todas as evidências são interpretadas com base em certas pressuposições e, a depender de quais “óculos” se usa para ver o mundo, todas as evidências podem apoiar tanto o criacionismo quanto a evolução, então os professores e comunicadores que ensinam evolução não podem estar somente tentando promover boa ciência, e seus verdadeiros motivos necessitam de investigação. Um artigo de Don Batten na revista Creation tenta fazer uma dessas investigações. De acordo com Batten: “Se considerarmos um quem é quem em relação àqueles que são mais visíveis em sua promoção pública e sua defesa da evolução — desde a Segunda Guerra Mundial, por exemplo — um padrão claro emerge: eles são praticamente todos ateus declarados!”. Batten conclui:

Vemos, portanto, que a evolução é fundamental/necessária para sua fé de que não há Criador e que tudo se fez (isto é, evolução). É por isso, então, que os ateus estão na vanguarda da promoção da aceitação pública da evolução — ela promove sua fé ateísta.[107]

De acordo com a versão criacionista cognitiva desse argumento, como é impossível que as conclusões científicas sejam verdadeiramente objetivas, a visão de que a inteligência é hereditária e mensurável apenas reflete as pressuposições sociais dos pesquisadores que optam por trabalhar a partir dessa perspectiva. Essa visão foi popularizada em A Falsa Medida do Homem, de Stephen Jay Gould, que descreveu (p. 53) sua visão da pesquisa de inteligência (e da ciência de forma mais geral) na seguinte passagem:

Eu critico o mito de que a própria ciência é um empreendimento objetivo, feito de maneira adequada apenas quando os cientistas podem se livrar das restrições de sua cultura e ver o mundo como ele realmente é. […] Em vez disso, acredito que a ciência deve ser entendida como um fenômeno social, um empreendimento humano corajoso, e não o trabalho de robôs programados para coletar informações puras.

Gould continua a argumentar contra a existência do que Ken Ham depreciativamente chama de “fatos brutos”. Gould escreve: “Os fatos não são bits de informação puros e imaculados; a cultura também influencia o que vemos e como o vemos”. Adicionalmente, ele conclui (p. 55) que “o potencial da ciência como um instrumento para identificar as restrições culturais sobre ela própria não pode ser totalmente alcançado até que os cientistas desistam dos mitos igualmente semelhantes de objetividade e da marcha inexorável em direção à verdade”. Em outro caso de sinergia entre criacionistas cognitivos e criacionistas da Terra jovem, algumas das declarações de Gould sobre a falta de objetividade do método científico foram amplamente citadas pelos criacionistas da Terra jovem como um argumento contra a existência de evidências objetivas para a evolução.[108][109][110][111]

Desde a época de Gould, o argumento de que não existe ciência objetiva permaneceu popular na literatura contrária à ciência da hereditariedade. A encarnação moderna desse argumento é apresentada no livro de Jonathan Marks de 2017, A Ciência é Racista?, que dedica grande parte de seu terceiro capítulo a criticar as premissas do método científico. Marks resume essas premissas da seguinte forma:

O pensamento científico é geralmente centrado em algumas suposições que se desenvolveram na Europa do século XVII. Os principais entre eles foram (1) o naturalismo, que alega existir um mundo perceptível distinto do mundo sobrenatural, que (apesar dos pontos de contato) pode ser estudado separadamente dele; (2), experimentalismo, que partes da natureza podem ser isoladas e estudadas em miniatura, por assim dizer, sob condições controladas, produzindo resultados que podem ser generalizados; (3) racionalismo, que a razão é o meio mais seguro de obtenção de conhecimento exato; e (4) que a precisão é a qualidade e o objetivo mais desejável da atividade científica.[112]

Marks prossegue afirmando que “Antropologicamente, todos esses pressupostos são bastante incomuns” e explica por que ele percebe como falha cada premissa. Ele afirma que a premissa do naturalismo é falha porque é uma característica do pensamento humano incorporar o sobrenatural ao natural; que a premissa do experimentalismo é falha porque é impossível replicar as mesmas condições exatas para reproduzir um resultado experimental; que a premissa do racionalismo é falha porque não podemos necessariamente esperar que a natureza se comporte de maneira racional; e que o desejo de precisão é falho porque “[a] precisão não é desejável em muitos contextos; na verdade, essa pode ser uma descrição adequada de polidez — um desprezo socialmente aceitável pela verdade”. Em resumo, ele afirma, no terceiro capítulo, que “enquanto a ciência luta pela objetividade, no reino da ciência biopolítica o melhor que você pode esperar é confrontar e transcender os preconceitos de seus predecessores, enquanto torna seus próprios preconceitos tão transparentes e benignos quanto possível”. Além de sua crítica mais geral ao método científico, No primeiro capítulo, Marks reserva um desprezo especial por aqueles que propõem uma explicação genética para as diferenças de grupo nas pontuações médias de QI, escrevendo: “Eles são ideologicamente corrompidos; ninguém deveria se importar com o que eles têm a dizer sobre o assunto”. Como aconteceu entre os criacionistas da Terra jovem, quando um indivíduo acredita que a objetividade na ciência é impossível, é uma conclusão quase inevitável que seus oponentes que afirmam ser objetivos estejam, na verdade, sendo motivados por preconceitos escusos.

Deve-se enfatizar que essa perspectiva sobre o método científico não se limita a apenas um pequeno grupo de pessoas, e o livro de Marks foi elogiado por muitos outros indivíduos proeminentes no campo da antropologia.[113] No ano seguinte à publicação de seu livro, um argumento semelhante foi apresentado na Encyclopedia of Critical Psychology, em que Brent e Nathan Slife argumentam (pp. 571–78) que “o empirismo tem ‘vieses de valor’ claros que fornecem um privilégio de certos aspectos de nossa experiência sobre outros, mas esses valores são frequentemente apresentados aos alunos como representantes dos ‘fatos’ ou da ‘lógica’ da ciência”.[114] O mesmo argumento também foi apresentado por alunos do Middlebury College como parte de sua base para protestar contra a aparição de Charles Murray lá: “A ciência sempre foi usada para legitimar o racismo, sexismo, classismo, transfobia, capacitismo e homofobia, todos velados como racionais e factuais, e apoiados pelo governo e pelo Estado. No mundo de hoje, poucas coisas são verdadeiramente um ‘fato’”.[115]

Esse ponto de vista representa um caso particularmente potente de efeito dominó, pois tem o potencial de minar conclusões em muito mais campos do que apenas psicologia e genética. Se a verdadeira objetividade na ciência é impossível, então como (por exemplo) alguém poderia saber com certeza que vacinas não causam autismo, e como saber se as pesquisas concluindo que elas não causam não estavam apenas refletindo vieses a favor da indústria farmacêutica? Da mesma forma, como alguém poderia confiar na FDA (Food and Drug Administration, a agência equivalente à ANVISA nos EUA. N. do T.) quando eles afirmam que os alimentos produzidos a partir de plantações geneticamente modificadas são seguros para comer, ou confiar nos climatologistas de que as emissões de dióxido de carbono estão contribuindo para a mudança climática? Ironicamente, muitos dos que estão mais preocupados com as possíveis consequências sociais da pesquisa sobre hereditariedade mostraram muito pouca preocupação com as possíveis consequências que poderiam ocorrer se seus próprios argumentos contra o método científico se tornassem amplamente aceitos.

4. Conclusão

Apesar de ocuparem extremos opostos do espectro político, tanto o criacionismo da Terra jovem quanto o criacionismo cognitivo convergiram para uma série de abordagens semelhantes. Essa semelhança é um resultado inevitável de sua confiança compartilhada na teoria criacionista do conhecimento, pois a reversão do método científico dessa teoria torna impossível evitar resultados como o efeito dominó e a adoção de ideias explicativas não parcimoniosas. Um exame futuro pode mostrar se as semelhanças descritas neste artigo também existem entre os defensores de outras visões de mundo que se engajam na rejeição moralmente fundamentada de conclusões científicas, como antivacinação e o ativismo antitransgênicos.

Uma diferença entre o criacionismo cognitivo e o criacionismo da Terra jovem é que o criacionismo cognitivo tem muito mais proeminência e influência na academia do que o CTJ. Por exemplo, os livros de Sussman e Richardson foram publicados, respectivamente, pela Harvard University Press e pela Columbia University Press, enquanto os livros e artigos criacionistas da Terra jovem são geralmente restritos a editoras religiosas e revistas criacionistas especializadas, como Creation Research Society Quarterly, Answers Research Journal e o Journal of Creation. Essa diferença também é exibida pelos diferentes graus de sucesso que os oponentes da evolução ou da pesquisa de inteligência tiveram em termos de impedir o ensino do ponto de vista a que se opõem. No mundo ocidental, as tentativas contemporâneas de interromper o ensino da evolução nas escolas públicas geralmente falharam, mas um editorial de 2017 publicado na Nature relatou que a inclusão da pesquisa de inteligência está “morrendo” nos currículos de psicologia das faculdades devido ao medo de acusações de racismo ou elitismo.[116]

O maior nível de influência acadêmica do criacionismo cognitivo significa que, em geral, ele é capaz de causar mais danos do que o criacionismo da Terra jovem, especialmente quando grandes faixas de pesquisas bem estabelecidas são rejeitadas devido ao seu potencial de apoiar ideias moralmente desagradáveis. A oposição à monografia de Arthur Jensen de 1969 que defendia um componente genético para as diferenças de grupo, bem como uma oposição semelhante à A Curva do Sino, levou a uma oposição generalizada à aceitação da herdabilidade da inteligência em geral.[117] A proposta de Holly Dunsworth, de que aulas de biologia devem enfatizar as implicações supostamente racistas da evolução em vez de simplesmente ensiná-la como uma teoria científica, demonstra como até mesmo uma área aparentemente desconectada da genética comportamental pode ser adversamente afetada pelo desejo de se opor ao “determinismo biológico”. Esse risco é particularmente agudo no caso do argumento de que a objetividade na ciência é impossível, que tem o potencial de minar conclusões de um vasto número de campos.

Além de encorajar a desconfiança em conclusões científicas estabelecidas, esse último argumento traz outro risco. Embora cientistas individuais nem sempre vivam de acordo com o ideal de objetividade, o preconceito no trabalho de qualquer indivíduo geralmente pode ser corrigido por pesquisadores posteriores, permitindo que os campos científicos se aproximem cada vez mais de uma compreensão precisa da realidade. No entanto, a capacidade autocorretiva da ciência só pode funcionar quando um número suficiente de cientistas considera a precisão e a objetividade como objetivos dignos de serem levados em conta no momento em que criticam os trabalhos uns dos outros. Se os campos científicos aceitarem o argumento de Marks de que “a precisão não é desejável em muitos contextos”, e que os cientistas devem (nas palavras de Gould) desistir “dos mitos igualmente semelhantes de objetividade e da marcha inexorável em direção à verdade”, esses campos se tornarão incapazes de corrigir a si mesmos de forma significativa. Desse modo, o argumento de que a ciência não pode ser objetiva pode, em última análise, provar-se uma profecia autorrealizável.

A pandemia de COVID-19 causou uma situação em que muitas vidas dependem da integridade e objetividade do método científico. Por exemplo, a ampla disseminação de informações imprecisas sobre o vírus e sobre como se proteger dele tem impedido as tentativas de limitar sua propagação.[118] Se a sociedade e a academia consideram o método científico a abordagem mais eficaz disponível para a compreensão da realidade, ou se, em vez disso, tratam a ciência como uma atividade política, pode ser a diferença entre a vida e a morte para aqueles que são mais vulneráveis.

O criacionismo da Terra jovem é amplamente entendido como contrário ao método científico e é o assunto de muitas e merecidas críticas vindas de educadores científicos. Por outro lado, o criacionismo cognitivo geralmente atrai muito menos crítica e escrutínio do que o criacionismo da Terra jovem, apesar de incorporar muito da mesma epistemologia e ser prejudicial por muitas das mesmas razões. Seria valioso para os educadores científicos que fossem reconhecidos os paralelos entre esses dois pontos de vista e a importância de fazer um esforço conjunto para combatê-los.

Agradecimentos

O autor gostaria de agradecer aos pesquisadores e revisores individuais que forneceram comentários cruciais no desenvolvimento do manuscrito.

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.

Leia também...
"A Ciência pode até não ser neutra, mas isso não te dá o direito de ser enviesado", para entender as motivações morais e ideológicas de Gould.
Clique aqui
Leia também...
"Cientistas, índios e outros selvagens: uma história sobre corrupção acadêmica", para talvez a pior história de conduta acadêmica criminosa envolvendo Gould e seus colegas, os autointitulados “biólogos dialéticos” marxistas.
Clique aqui
Leia também...
"A sociologia tem medo da biologia — e sem boas razões", para entender o que é conhecido como biofobia.
Clique aqui
Leia também
"Por que biólogos odeiam biólogos?", para entender melhor a discussão entre Alcock e Gould.
Clique aqui
Previous slide
Next slide