O que frequentemente chamamos de ciências evolutivas comportamentais é toda abordagem evolutiva do comportamento que segue a tradição da etologia e sociobiologia, duas áreas baseadas na teoria da evolução de Charles Darwin. Mas, afinal, o que é etologia, e o que é sociobiologia? Como é provável que muitos de nossos seguidores tenham dúvidas sobre o tema e já que existe certa desinformação sobre a natureza dessas áreas, resolvemos que seria melhor publicar um apanhado geral.
“Etologia” vem do grego “ethos”, que significa “caráter”, enquanto “logia” significa “estudo de”. Assim, por volta de 1930, a área nasce do princípio de que os animais vêm ao mundo com comportamentos inatos, “ethos”, um repertório geneticamente baseado (isto é, instintivo) e incondicionado de comportamento que evoluiu durante a história evolutiva da espécie[1]. A etologia surge como oposição ao behaviorismo, ou comportamentalismo, que é uma abordagem cuja ênfase está na aprendizagem e nos condicionamentos do ambiente em que o animal cresce[2]. Em meados dos anos 60 e 70, a etologia se desenvolve tanto até que seus fundadores, Konrad Lorenz, por descobrir o imprinting estudando gansos, Karl von Frisch, pela descoberta da comunicação em abelhas, e Nikolaas Tinbergen, pelo que hoje é conhecido como “estímulo supernormal”, acabam por receber o Prêmio Nobel de 1973[3].
“Sociobiologia”, enquanto isso, foi o termo cunhado pelo entomólogo Edward Osborne Wilson em 1975, quando publicou seu Sociobiology: The New Synthesis. A ambição central de Wilson, além de reunir toda a literatura em ciências comportamentais de sua época, era fazer uma síntese entre etologia, ecologia, psicologia e fisiologia animal, biologia desenvolvimental e reprodutiva, genética e, também, sociologia, que é o estudo do comportamento social dos seres humanos – em outras palavras, ele queria que da biologia comportamental, o que chamou de sociobiologia, derivassem todas as ciências do comportamento, incluindo as ciências humanas.
Mas o contexto político não era dos melhores. O mundo acabava de ver o poderio destrutivo do nazismo, uma doutrina alegadamente baseada na biologia, e era período de Guerra Fria. Quando Wilson teve a intenção de unir a sociologia às ciências biológicas, a mentalidade coletiva estava dividida entre a visão comunista e a visão capitalista – a primeira com ênfase no grupo e na cultura, e a segunda com ênfase no indivíduo e em seus supostos talentos. Como a sociobiologia enfatizava os princípios da etologia moderna, que trata de habilidades individuais inatas, sucesso reprodutivo individual e outros aspectos individuais dos animais, para os críticos isso estava a um passo da justificação do status quo capitalista. Wilson criou inimizade entre sociólogos, filósofos políticos, antropólogos e entre outros biólogos, estes de orientação marxista. Sofreu agressões físicas em apresentações públicas e foi insultado como um racista, genocida e eugenista[4].
Para a época, apesar da repulsa à sociobiologia ser relativamente compreensível, nada justifica as agressões e as tentativas de assassinato de reputação sofridas por Wilson e seus apoiadores. Mais ainda, a indignação era seletiva, já que o mundo também havia visto o poderio destrutivo do comunismo na União Soviética, com sua opressão totalitária, seus genocídios de fome e todo o seu sistema baseado em uma teoria diametralmente oposta ao “inatismo” propagado pelo nazismo[5, 6], uma fundamentada no materialismo histórico-dialético de Karl Marx, que enfatizava o ambiente, a cultura e a criação sobre o comportamento humano, este que seria passível de mudança radical dadas as condições do meio (através da ordem do agrônomo Trofim Lysenko, a URSS também aplicou essa teoria materialista na produção agrícola, culminando na experiência fracassada que ficou conhecida como Lysenkoismo[7, 8]).
Seria ingenuidade achar que as coisas se amansariam no século seguinte. Fora os atritos do passado terem feito os próprios sociobiólogos chamarem a si mesmos de ecólogos comportamentais a fim de evitar o estigma, com o advento da nova “cultura do cancelamento”, que segue com sua ideologia anticientífica tentando “cancelar” figuras históricas importantes junto de suas contribuições, incluindo o próprio Charles Darwin[9] (o que une criacionistas reacionários[10] e radicais de esquerda[11]), as ciências evolutivas do comportamento provavelmente terão mais uma luta pela frente.
Entretanto, como previu corretamente E. O. Wilson, a ambição central de Sociobiology segue inabalável e se estabelecendo nas mais diferentes áreas como um modelo explicativo metateórico, fundante, conciliatório e robusto do comportamento animal e humano em todas as suas expressões, tendo se ramificado em uma multitude de abordagens complementares (tendo feito até as pazes com o behaviorismo[12]), como a antropologia evolucionista (incluindo a etologia humana[13]), a teoria da dupla herança ou co-evolução gene-cultura, a psicologia, neurociência[14], psiquiatria[15] e endocrinologia[16] evolucionistas e a genética[17] e ecologia[18] comportamentais, desenvolvendo implicações em praticamente todos os âmbitos da atividade humana, incluindo crime[19], violência[20], lei[21], ética e moral[22], morte[23], sexualidade[24], ambientalismo e conservação[25], cultura imaginativa[26], saúde mental e física[27] e desenvolvimento infantil[28].
Em especial, a psicologia evolucionista, a abordagem psicológica da sociobiologia humana e a mais atacada pelos críticos[29, 30, 31], é uma linha ativa de pesquisa nas melhores universidades do mundo[32], com pesquisadores notáveis em Yale[33], Harvard[34], Oxford[35] e Missouri[36], além de figurar em estudos recentes nas principais revistas científicas[37, 38, 39, 40, 41, 42] e em livros-texto atualizados. Nesse sentido, o Manual de Psicologia Evolucionista[43] é um trabalho coletivo de pesquisadores e instituições nacionais e internacionais que contempla os fundamentos da área, com 24 capítulos divididos em cinco seções: (I) Fundamentos para a Psicologia Evolucionista, (II) Cognição e Emoção, (III) Comportamento Sexual e Reprodutivo, (IV) Desenvolvimento e Família e (V) Comportamento Social e Cultura.
Paralelamente à abordagem humana, a ênfase não-humana também avançou desde o nascimento da etologia moderna e da publicação de Sociobiology. Hoje em dia, os estudantes dos cursos de ciências biológicas, medicina veterinária e psicologia contam com uma bibliografia traduzida, Comportamento Animal: Uma Abordagem Evolutiva, de John Alcock[44], além de terem à disposição a literatura atualizada dos últimos cinco anos, incluindo Insect Behavior[45], Animal Cognition[46], Principles of Animal Behavior[47] e Encyclopedia of Animal Behavior[48], com mais de 3 mil páginas contando todos os 4 volumes.
Como se pôde ver, além de fazer sentido em si mesmas, as ciências evolutivas comportamentais fundamentam diversas outras áreas que tratam do comportamento. Levando isso em consideração e apesar das tais ciências ainda estarem engatinhando, o progresso é constatável, há um acúmulo massivo de conhecimento e uma visível integração epistemológica. Hoje, com a instrução certa, se tornou mais fácil que alguém compreenda mais verdadeiramente a cognição, a emoção e o comportamento, independentemente de estarmos falando de seres humanos ou de outros animais. Wilson certamente admira essa mudança, e ela surpreenderia Tinbergen, Lorenz e von Frisch, mas quem mais se emocionaria seria Charles Darwin, que, nas últimas páginas de A Origem das Espécies, onde elaborou sua teoria da evolução por seleção natural, predisse que a psicologia e as ciências da mente teriam um fundamento ao qual desenvolverem-se, e concluiu afirmando que “muita luz” seria “lançada sobre a origem do homem e de sua história”. Ele estava certo.

Iniciada em 2018, E&S é uma iniciativa de popularização das ciências evolutivas comportamentais.
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Cícero André
Parabéns jov, belo site. Sucesso!
vitor mendes dias
Parabéns pelo conteúdo!