Os fundamentos epistemológicos da psiquiatria moderna e da medicina psicossomática (incluindo a maioria das psicoterapias) estão claramente enraizados no naturalismo. Ou seja, o único entendimento cientificamente valioso dos distúrbios psiquiátricos refere-se a fenômenos cognitivos, emocionais e comportamentais como consequência da atividade neural no sistema nervoso central. Mais especificamente, é tacitamente reconhecido que os seres humanos têm não apenas uma história pessoal (ontogenia), mas também uma história filogenética. De qualquer forma, por várias razões, a perspectiva filogenética ainda não foi totalmente reconhecida pela psiquiatria contemporânea, e a teoria da evolução nunca entrou formalmente nos currículos médicos, o que pode ser considerado um grande impedimento para o progresso terapêutico[1][2][3][4].
Durante décadas, os psiquiatras tiveram que lutar com formas divergentes de conceituar doenças psiquiátricas, dependendo do foco subjacente da atenção. O final do século XIX e o início do século XX testemunharam uma primeira onda de transtornos mentais biológicos[5], baseada em falsas premissas biológicas e uma quase completa falta de reconhecimento de fatores sociais como causadores de transtornos mentais. O pêndulo voltou nos anos 50, quando a teoria psicanalítica se tornou a estrutura dominante da psiquiatria. Durante esse período, prevaleceu a visão de que os distúrbios psiquiátricos estavam exclusivamente enraizados em pensamentos e sentimentos reprimidos, bem como em uma díade mãe-filho desfavorável, culminando em conceitos como ‘a mãe esquizofrenogênica’. Desde a década de 1980, com o advento de novas ferramentas de diagnóstico, há novamente um interesse crescente nos fundamentos genéticos dos distúrbios psiquiátricos, nas anormalidades anatômicas do cérebro e na neurotransmissão anormal de correlatos cognitivos, emocionais e comportamentais.
Ainda assim, houve um forte movimento que buscou reformular os insights da psicanálise (e do comportamentalismo) para um novo conceito de entendimento dos transtornos psiquiátricos como sendo causado por experiências precoces adversas. No entanto, na perspectiva conceitual, causas biológicas (genética e neurotransmissão) e causas psicológicas (fatores interpessoais adversos) há muito tempo são tratadas como abordagens diametralmente opostas à compreensão dos distúrbios psiquiátricos. Dessa forma, não apenas em termos clínicos, mas também em relação às questões de pesquisa, esses dois campos levaram vidas bastante solitárias, principalmente porque o arcabouço conceitual abrangente — baseado na teoria da evolução — foi insuficientemente apreciado[6].
Para superar as dificuldades no diagnóstico de distúrbios psiquiátricos — tanto quanto a psiquiatria carece de conhecimento suficiente sobre a etiologia e os testes laboratoriais confiáveis da maioria dos distúrbios psiquiátricos — a psiquiatria formalizou o processo diagnóstico. Os manuais mais utilizados são o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Internacional de Doenças (CID). Esses manuais têm a vantagem de melhorar a confiabilidade do diagnóstico, embora com o custo de reduzir a complexidade dos fenômenos clínicos. Embora alegadamente sejam em grande parte “ateóricos”, eles representam compromissos entre várias “escolas” de psiquiatria. Além disso, eles parecem sugerir a existência de entidades discretas para doenças (embora os manuais declarem explicitamente o contrário), o que não é suportado por nenhuma evidência científica. Para estudantes e residentes em psiquiatria, a impressão de que existem categorias distintas de diagnóstico em psiquiatria pode dar a eles uma falsa sensação de certeza sobre diagnóstico e tratamento, mas os distúrbios psiquiátricos surgem ao longo da normalidade e diferenças dimensionais ou graduais, mesmo entre os distúrbios, são a regra, não a exceção.
Assim, manuais puramente descritivos ajudam a alcançar um consenso diagnóstico entre os médicos, mas devem ser usados com cautela devido à sua arbitrariedade. O que o DSM e o CID refletem insuficientemente são diferenças entre os sexos na apresentação de sinais e sintomas, bem como questões interculturais. Nossos sistemas de diagnóstico são muito estreitos para uma comparação transcultural válida[7], presumivelmente porque se originaram em grande parte de uma pequena área geográfica da Europa Ocidental[8].
Agora estamos em um ponto em que a integridade da psiquiatria está comprometida pelo afastamento de suas subespecialidades. A psiquiatria biológica, social e a psicoterapia precisam de uma estrutura integradora adequada para clínicos e pesquisadores. Por exemplo, os médicos que veem pacientes não têm acesso aos perfis de composição genética ou de receptores de neurotransmissores nem têm seus padrões de ativação durante a geração de imagens cerebrais funcionais. A tarefa dos médicos é entender a cognição, as emoções e o comportamento dos pacientes em um ambiente frente a frente. Por outro lado, os pesquisadores precisam cada vez mais abandonar os sistemas nosológicos para obter progresso científico. As contribuições da variação genética de genes individuais, ou o padrão de ativação durante a imagem cerebral funcional, são, na melhor das hipóteses, específicas dos sintomas, e não específicas de uma síndrome (ou distúrbio). De acordo com a abordagem descritiva, os distúrbios precisam ser entendidos em termos de sintomatologia, epidemiologia, fatores genéticos e ambientais, fisiopatologia e interação gene-ambiente, em que a “teoria da história de vida” pode atuar como um guia para integrar essas fontes de informações[9].
Tudo isso visa entender a função das cognições, emoções e comportamentos de um indivíduo, o que é bastante difícil no que chamamos de funcionamento normal, mas muito mais difícil em estados de desordem. Os distúrbios psiquiátricos refletem claramente estados de funcionamento anormal e desadaptativo, na medida em que a apresentação de sinais e sintomas às vezes pode parecer funcionalmente sem sentido. No entanto, à luz da perspectiva dimensional, sugerindo que sinais e sintomas psicopatológicos são distintos da ‘normalidade’ por grau, não por tipo, a análise dos mecanismos adaptativos correspondentes pode lançar luz sobre os aspectos comunicativos de fenômenos mentais anormais. Em resumo, é essencial que as condições psiquiátricas, como outras condições médicas, sejam analisadas holisticamente da perspectiva da medicina darwiniana[10].
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Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.