A segunda metade do século passado presenciou alguns dos debates científicos mais absurdamente desnecessários, e tudo porquê os responsáveis, homens adultos e de extensa reputação, estavam tão imersos em disputas ideológicas que não somente não notavam isso como também projetavam esse tipo de coisa nos outros[1]. Um exemplo marcante dessa conduta foi Stephen Jay Gould, enorme cientista e divulgador da biologia que, de quebra, era partidário da ideologia marxista.
Gould se opôs de corpo e alma à pesquisa adaptacionista, aquela que vê os atributos dos seres vivos como existentes para cumprir funções que aumentam as chances do indivíduo deixar mais descendentes do que a média (“a agressão serve para […]”, “a expressão facial serve para […]”, “as asas servem para […]”), sempre argumentando que não existiam funções para a maioria dos atributos dos animais; que, na verdade, eles eram melhor entendidos de maneira nula — suas funções seriam ilusões de interpretação, ruídos de aparente especialização que podem ser só coincidências do desenvolvimento (o amadurecimento individual e a replicação celular).
Por exemplo, a objeção de Gould na razão das hienas fêmeas terem um pseudopênis era de que a genitália masculinizada e uma maior estatura, em vez de ajudá-las na disputa com machos por recursos, eram na verdade um “subproduto” decorrente dos altos níveis de testosterona vistos nos corpos femininos. Você, leitor, consegue perceber que as duas questões, a dominância por sobrevivência e a distribuição hormonal, estão em níveis completamente diferentes e… complementares? Embora exista razão em dizer que o pseudopênis tenha evoluído como uma consequência do embalanço hormonal, isso não quer dizer que o atributo não tenha função hoje. Não há dominância feminina, o que inclui sinalizações (que é o animal fazer uso do pseudopênis para fins visuais de intimidação e até contato), em hienas sem um correlato hormonal específico, que no caso é a distribuição atípica, para as fêmeas, de testosterona.

A semelhança nas genitálias masculina (esquerda) e feminina (direita) na hiena-malhada.
Agora, como Gould, uma das personalidades mais memoráveis da ciência biológica, não conseguia admitir isso? A resposta é muito simples: ele estava comprometido demais com a justiça social. Para Gould, atribuir funções à morfologia ou aos traços de comportamento logo esbarraria no comportamento humano, o que terminaria justificando o status quo e o capitalismo. Essa é também a razão de sua oposição à sociobiologia humana de E. O. Wilson. Na cabeça de Stephen Jay Gould não existia separação entre ciência e ideologia, e a primeira deveria estar a serviço da segunda[2, 3].
Por que eu acho isso, fora ele mesmo ter admitido tal coisa em inúmeros contextos? Porque Gould provavelmente não relutaria em aceitar que, por exemplo, as sementes de carrapicho grudam nas superfícies devido a isso aumentar a taxa reprodutiva da planta mãe, havendo mais chances de germinação. Quem em sã consciência diria que “na verdade, a aderência das sementes acontece devido a uma substância ou estrutura produzida durante a embriogênese”, achando estar contrariando que exista uma função reprodutiva nas coisas serem exatamente dessa forma?

Inflorescência de capim-carrapicho (Cenchrus echinatus) contendo sementes.
O fato é que quanto maiores são as implicações políticas implícitas em uma hipótese adaptacionista, maior é a oposição vinda daqueles que estão mais preocupados com os pobres do que em descrever a realidade. As chances de Gould se opor tão ferozmente à explicação adaptacionista para as sementes serem grudentas como se opôs à explicação adaptacionista para a dominância violenta entre hienas — que são mamíferos e, portanto, muito mais próximos de nós — seriam, eu acredito, infinitamente menores.
Em 2014 foi publicado um estudo[4, 5] que testava esse tipo de recepção às explicações biológicas, só que entre sociólogos. Os autores deram um questionário contendo cerca de 8 perguntas a dezenas desses estudiosos e foi solicitado que eles atribuíssem confiança ou desconfiança a cada uma das alegações, de 1 a 8. O primeiro ponto era de que evoluímos uma tendência a preferir alimentos com alto teor calórico (quem disputaria que todo mundo adora uma pizza?), e o último, bem, de que homens têm motivações inatas em controlar a liberdade sexual de suas parceiras. Não deu outra: a receptividade caiu conforme o aumento da sensibilidade política, deixando o 1 como mais aceito e o 8 como menos. Alguém está surpreso?
A concepção de igualdade de boa parte dos sociólogos entrevistados e de gente como Gould baseia-se na noção equivocada de que somos todos iguais por natureza. Isso está errado. Não pouco, mas muito errado. A igualdade é um conceito sociopolítico que independe de sermos iguais ou diferentes em nossa biologia. A igualdade é literalmente uma construção social. Como, porém, aqueles incondicionalmente preocupados com a justiça social estão também muito ocupados equiparando igualdade social e desigualdade biológica, temos como resultado a negação da natureza humana e o medo da biologia. Ernst Mayr, um dos biólogos mais importantes do século XX, já se alertava sobre isso décadas antes dos debates que envolviam Gould:
A igualdade, a despeito da evidente não-identidade, é um conceito um tanto refinado e requer um desenvolvimento moral do qual muitos indivíduos parecem ser incapazes. Preferem negar a variabilidade humana e equiparar igualdade e identidade. Ou afirmam que a espécie humana é excepcional no mundo orgânico no aspecto de que apenas as características morfológicas são controladas pelos genes, e outras características da mente ou do caráter são devidas a “condicionamento” ou a outros fatores não genéticos. Esses autores convenientemente não dão atenção aos resultados dos estudos com gêmeos e às análises genéticas de características não morfológicas em animais. Uma ideologia baseada em premissas obviamente erradas como essas só pode conduzir ao desastre. Sua defesa da igualdade humana tem por base uma afirmação de identidade. Tão logo for provado que essa identidade não existe, o alicerce da igualdade igualmente se perderá.
Em 2011 foi publicado um outro estudo[6] bastante interessante. Nele, os autores fizeram uma checagem na análise de Gould sobre o formato dos crânios entre as populações humanas, antes chamadas de raças. Após ele mesmo ter checado, Gould defendia que os crânios de várias dessas populações não eram diferentes. Argumentou também que Samuel George Morton, quem primeiro mediu os crânios, foi alguém que se deixou levar pelos preconceitos da época, tendo chegado às conclusões erradas por ter visto somente o que queria ver. Ironia do destino ou não, os autores concluíram que a análise de Morton era verdadeira e que foi Gould, e não Morton, quem inventou conclusões que preenchessem preconceitos prévios.
É impossível deixar de reconhecer que Gould popularizou a ciência de um jeito que poucos conseguiram e conseguirão fazer. Ele formou professores e uma geração inteira de outros pesquisadores. Mas ele não estava isento de vieses. E foi justamente a sua preocupação excessiva em discriminar o viés dos outros que fez com que ele se esquecesse de discriminar o seu próprio. Por isso, peguemos toda essa história como ensinamento: em vez de preocupar-se tanto em dizer que as verdades dependem do contexto, que “todo mundo tem viés” e “não existe ciência neutra”, preste bem atenção e certifique-se de que, ao aderir a essas posições, você não está as usando como válvula de escape em relação a eximir a si mesmo da busca por imparcialidade, honestidade e responsabilidade intelectual.

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.
Gostou do conteúdo?
Nossa organização depende do retorno do público. Sua ajuda, portanto, seria muito bem vinda. Para colaborar, clique no coração!