Quem foi Edward Osborne Wilson?
Professor Emérito da Universidade de Harvard, Wilson é reconhecido pela mesma universidade como responsável por desenvolver “as bases da moderna conservação da biodiversidade”, além de ser o “fundador da sociobiologia e da psicologia evolucionista”. Para mais sobre seu trabalho, veja seu verbete na Wikipédia ou seu currículo. Esta entrevista foi feita originalmente no ano de 1997 por Frans Roes, que a publicou em seu site.

Konrad Lorenz[1] escreveu que animais da mesma espécie às vezes matam uns aos outros por acidente, nunca de propósito. Os humanos são supostamente a exceção. O que você tem a dizer sobre isso?

Bem, é claro que a evidência acumulada nos últimos trinta anos mostra que isso não é verdade. O assassinato de membros da mesma espécie, incluindo a morte deliberada durante as disputas por dominância, a matança de rivais territoriais e a invasão de machos, infanticídio e até canibalismo, são coisas comuns. Isso foi demonstrado em muitos grupos diferentes de animais[2]. Sempre esperamos que o que Lorenz dissera fosse verdade de modo que pudéssemos usar o reino animal como um exemplo de como os seres humanos não deveriam se comportar.

Os humanos matam mais do que os outros animais?

Não. Os dados vindos de estudos comportamentais de longo prazo em grupos como leões, hienas e chimpanzés mostram que a taxa de homicídio per capita em sociedades animais é muito maior do que em seres humanos. Acontece que temos uma mídia que nos alerta sobre assassinatos sempre que eles ocorrem. Algum tempo atrás eu calculei esse tipo de coisa, e eu acredito que essa comparação seja verdade mesmo se você adicionar a taxa de mortalidade vinda da agressão direta durante a guerra na era moderna. Mesmo durante as guerras mundiais, em alguns episódios durante este século em que vimos a maior mortalidade da história moderna, a porcentagem de pessoas mortas em toda a população da Europa ainda foi relativamente pequena. Enquanto uma porcentagem maior de um clã inteiro de animais sociais agressivos às vezes é morta, a morte de dezenas de milhões de pessoas ainda foi apenas uma pequena porcentagem, por mais horrível que tenha sido. E quando você leva em consideração as formigas, elas são genuinamente os animais mais belicosos, e as taxas de mortalidade de indivíduos e colônias podem ser verdadeiramente espantosas.  

Mas os animais frequentemente demonstram moderação, como afirmou Lorenz. Há lutas ritualizadas e a parte perdedora muitas vezes não é morta. Por que não, se o perdedor pode viver e lutar outro dia?

Lorenz estava basicamente correto ao apontar que a maior parte da agressão animal é ritualizada. Já houve muita discussão quanto às explicações do por que os animais demoram tanto para partir para cima podendo atacar diretamente. Acredito que a explicação predominante é que muitas vezes torna-se vantajoso para ambas as partes estabelecer alguma comunicação, algo que permita que o duelo seja guiado pela exibição em vez da agressão direta. Uma das razões para isso é que mesmo o indivíduo mais forte frequentemente é morto ou gravemente ferido. Pela mesma razão, um vencedor pode abster-se de matar o perdedor, porque o perdedor ainda pode ser uma ameaça. E o vencedor pode ter que enfrentar mais um rival. Além disso, para um animal social pode não valer a pena matar um animal subordinado, porque o subordinado pode ser vital para o sucesso dos animais dominantes, particularmente na caça ou no combate a grupos rivais. Outra explicação é a seleção de parentesco[3]; rivais geneticamente relacionados podem ter um interesse genético em manter um ao outro vivo.

Quanto aos machos rivais de uma espécie que possui armamentos letais, como cobras venenosas, o uso de tais armamentos por um dos lados quase certamente resultaria em retaliação imediata. Portanto, acredito que existam várias razões pelas quais rivais frequentemente evitam a agressão imediata, em vez disso engajando em rituais complexos que muitas vezes são bastante evidentes e elaborados.

No entanto, animais da mesma espécie costumam se matar. Como Lorenz poderia estar tão errado?

Lorenz foi um grande naturalista, mas ele estudou apenas um número muito limitado de espécies. O quadro mais recente só apareceu depois de estudos de campo com muitos animais que não haviam sido estudados na época dele. Não era o caso de ele ignorar informações, ele simplesmente não tinha as informações.

Mas também acredito que o grande sucesso de seu livro Das sogenannte Böse, ou On Aggression, foi devido em parte ao fato de que era uma mensagem que as pessoas queriam ouvir, a saber, que a natureza nos diz que é um erro ser agressivo e fazer guerra. Eu conhecia um pouco Konrad Lorenz, que foi uma das minhas fontes de inspiração quando eu era um jovem estudante. Uma das razões pelas quais ele se aborreceu comigo foi que eu mostrei, ao reunir uma grande quantidade de informações sobre insetos nos anos 1960, que não apenas muitos insetos matavam uns aos outros em suas interações agressivas, mas também que a agressão era totalmente ausente em um grande número de outras espécies. Então, de fato, a agressão não era um instinto geral espalhado por todo o reino animal como Lorenz pensava, ela acontecia apenas em espécies nas quais o comportamento agressivo evoluía como um fator densidade-dependente. Em outras palavras, quando as densidades das populações não são reguladas por predadores, emigração ou doenças, então o que você tem são formas de agressão territorial e outras, que podem ser interpretadas como uma resposta especializada para favorecer indivíduos que competem por recursos limitados. Nem todas as espécies têm indivíduos crescendo a densidades e números que favoreçam a competição. Nesses casos, nunca há uma situação em que haja alguma vantagem em ser agressivo.

Existem cerca de 9.500 espécies de formigas conhecidas, muitas das quais você estudou, mas existe apenas uma espécie humana. Por quê? 

Acho que tenho a resposta para isso: somos muito grandes. Somos animais gigantes. Quanto maior o animal, maior o território e área de vida necessitada por ele. As formigas, que consistem em organismos muito pequenos, podem dividir o ambiente muito bem. Você pode ter uma espécie que vive apenas em galhos ocos no topo das árvores, outra espécie que vive na casca e outra espécie que vive no solo. Os seres humanos, sendo animais gigantes e parcialmente carnívoros, não podem dividir o ambiente perfeitamente entre as diferentes espécies de Homo. Houve episódios em que tínhamos várias espécies de hominídeos, provavelmente duas ou três espécies de Australopithecus, coexistindo talvez com o Homo mais antigo. Mas é evidente a tendência das espécies hominídeas e particularmente do Homo de erradicar quaisquer rivais. É uma ideia muito difundida entre os antropólogos que, quando o Homo sapiens saiu da África para o sul da Europa há cerca de cem mil anos, ele eliminou a linhagem dos Homo neanderthalensis, que eram uma espécie nativa europeia que sobreviveu muito bem ao longo da costa durante o avanço das geleiras.

Você escreveu que formigas frequentemente compartilham comida entre si. Por que isso acontece e como você descobriu isso?

Na década de 1950, eu e Tom Eisner, um colega meu, fizemos, acredito, os primeiros experimentos rastreando água com açúcar rotulada radioativa através de colônias de formigas. Pudemos estimar a taxa em que os alimentos foram trocados e o volume em que foi trocado. Não somente muitas colônias trocam alimentos com dedicação fanática como, também, nas colônias de muitas formigas, as operárias regurgitam alimento a uma taxa extraordinariamente alta. Agora entendemos que o resultado disso é que, a qualquer momento, todas as operárias têm, aproximadamente, o mesmo conteúdo alimentar em seus estômagos. É uma espécie de estômago social, funciona para que uma formiga seja informada da situação de uma colônia pelo conteúdo de seu próprio estômago, e isso de maneira que ela saiba o que deve fazer pela colônia. Se você tivesse apenas um pequeno número de formigas extremamente bem alimentadas e o resto estivesse com fome, as operárias sairiam em busca de mais comida, mesmo que fosse um péssimo momento para fazer isso.

E por que esse tipo de comunismo não existe em humanos?

O que gosto de dizer é que Karl Marx estava certo, o socialismo funciona, só que ele errou a espécie. Por que não funciona em humanos? Porque temos independência reprodutiva e conseguimos maximizar nossa aptidão darwiniana[4] cuidando da nossa própria sobrevivência e tendo nossos próprios descendentes. O grande sucesso dos insetos sociais é que o sucesso dos genes individuais é investido no sucesso da colônia como um todo, e principalmente na reprodução da rainha, que produz novas colônias.

Essa, na minha opinião, é uma das maiores contribuições da ideia de seleção de parentesco. Hoje entendemos muito bem a razão da maioria das espécies de insetos sociais terem operárias estéreis em suas colônias, o que possibilita que vivam em sistemas semelhantes ao comunista. Quando a colônia é tudo, o indivíduo é apenas uma parte da colônia, e o sucesso de toda a comunidade está acima do sucesso do indivíduo[5]. A organização dos insetos sociais evoluiu com referência ao que seus indivíduos contribuíam para a comunidade, enquanto que a aptidão genética de um ser humano depende do quão bem ele pode usar a sociedade individualmente. Só nos tornamos semelhantes aos insetos através de rígidos acordos contratuais.

Você escreveu que a maior diferença entre humanos e formigas é a de que nós enviamos nossos jovens à guerra enquanto elas enviam suas fêmeas mais velhas. Por que isso é dessa forma?

Bem, em primeiro lugar, todas as formigas operárias são fêmeas. Nas sociedades de abelhas, formigas e vespas, as irmãs são extremamente próximas umas das outras e, portanto, vale a pena ser altruísta com as irmãs, enquanto os irmãos não se beneficiam em dar nada às irmãs. Portanto, as fêmeas são aquelas que são fanaticamente devotadas umas às outras.

Por que têm que ser as mais velhas? Mais uma vez, tudo se resume à questão do que é melhor para a colônia. À medida que envelhecem, as operárias passam mais e mais tempo do lado de fora e, quando tornam-se muito velhas ou ficam feridas ou doentes, passam todo o tempo fora da colônia ou bem à borda. A vantagem disso é que os indivíduos que já fizeram a sua parte e morrerão de qualquer maneira acabam sacrificando a si mesmos. É o mais barato para a colônia.

Ao passo que, em humanos, não apenas os machos jovens são os mais fortes, como também por serem mamíferos em uma sociedade competitiva, eles tendem a ser mais atraídos pelo risco, mais corajosos e mais aventureiros. Eles estão subindo na escada do status, do ranking, do reconhecimento e do poder. E ser um membro da classe guerreira quando necessário sempre foi uma maneira rápida de ascender. Portanto, esse parece ser o principal motivo pelo qual enviamos os mais jovens à guerra, que estão sempre dispostos a ir.

Hoje em dia, existem mais termos além de “sociobiologia”, como “psicologia evolucionista”, “antropologia darwiniana” e outros. Por que tantos nomes?

A tradição etológica lorenziana clássica reconhece que as características animais evoluem no comportamento da mesma forma que na anatomia. Você não pode avaliar o grande avanço que foi intelectualmente nas décadas de quarenta e cinquenta, a menos que tenha vivido essa época. Agora nós consideramos isso um fato dado. Nos anos 70, percebi que precisávamos de um novo corpo teórico que incorporasse os melhores elementos da etologia, mas que fosse direcionado ao estudo das sociedades, em particular sociedades complexas, e que usasse a teoria da seleção natural para explicar as relações dentro das sociedades. A sociobiologia seria o estudo da base biológica de todas as formas de comportamento social, em todos os tipos de organismos, incluindo os seres humanos.

A sociobiologia foi então atacada de todos os lados[6] pelos críticos devido às suas implicações ao estudo do comportamento humano. Era considerado um determinismo biológico inaceitável para as ciências sociais. Qualquer ideia de que o comportamento humano de qualquer tipo tinha uma base biológica era inaceitável nos anos 70. E havia críticos marxistas como Gould e Lewontin, que achavam que isso era prejudicial ao progresso dos seres humanos em direção a uma sociedade socialista, algo que eles consideravam a sociedade mais justa e inevitável. Você não vai fazer Gould[7] admitir isso hoje, mas era assim que ele falava naquela época!

Portanto, a palavra “sociobiologia” estava sob forte ataque no final dos anos 70 e no início dos anos 80. O assunto da sociobiologia, entretanto, floresceu, tornando-se o paradigma dominante nos estudos do comportamento animal. Mas em humanos era tão polêmico e havia tantos mal entendidos e ataques! Então uma nova geração entrou no campo da sociobiologia humana, alguns muito capazes, e eles surgiram com ideias realmente novas. E eles começaram a evitar a palavra sociobiologia e a usar palavras como psicologia evolucionista e antropologia darwiniana. Também existe a expressão que alega o seguinte: um cientista prefere usar a escova de dente de outro cientista do que sua terminologia.

E o famoso incidente de 1978, em que um ativista anti-sociobiologia jogou um balde d’água na sua cabeça, será que aquilo não te motivou, mesmo que inconscientemente, a dedicar mais tempo à biodiversidade?

Deixar a sociobiologia por causa de uns baldes d’água? A resposta é não. Eu fui para a biodiversidade porque ela é minha paixão pessoal. Fui treinado para estudar biodiversidade. Eu tinha estado nos trópicos e estava bem ciente de todos os problemas de conservação ao redor do mundo. Percebi que havia chegado o momento de os biólogos que conheciam a biodiversidade, a ecologia e a extinção se tornarem ativos neste campo. Devido ao fato de considerar estar envolvido com o futuro imediato algo mais importante do que estudar o comportamento humano, seja ajudando a divulgar informações, obtendo políticas e assim por diante, acho que tomei a decisão certa. E, além disso, eu simplesmente adorei o trabalho. Isso é o que eu faço naturalmente, estudo a biodiversidade.



Notas (do T)

1. Konrad Lorenz foi um dos fundadores da Etologia, que veio antes da Sociobiologia. Veja mais sobre ele aqui.

2. Um artigo da mesma época que dá o panorama da ciência do comportamento animal quanto ao “assassinato”, a morte de animais pelos seus próprios coespecíficos, nos tempos de Lorenz e depois do surgimento da Sociobiologia é o The Evolution of Coalitionary Killing, do sociobiólogo humano, antropólogo darwiniano, evolucionista ou simplesmente ecólogo comportamental Richard Wrangham.

3. A seleção de parentesco é o tipo de seleção natural que favorece o sucesso reprodutivo (a aptidão, como veremos na nota seguinte) dos parentes diretos de um indivíduo — mesmo às custas deste. Veja mais aqui.

4. Aptidão ou fitness é uma medida em biologia evolutiva que diz respeito à contribuição no número de descendentes que um indivíduo deixa às novas gerações. É de suma importância para a perpetuação e manutenção genética e social, pois trata da continuação do fenômeno da vida em si.

5. Por exemplo, as operárias, visto que são estéreis e não produzem descendência, “terceirizam” a reprodução à rainha, que mantém a organização social produzindo mais operárias estéreis. Um exemplo extremo desse fato é a evolução do comportamento suicida em abelhas, que depois da ferroada morrem sem deixar descendentes. Mesmo Darwin ficava encabulado em como tal coisa poderia ter evoluído, já que, para a evolução ocorrer, os organismos precisam de uma vantagem reprodutiva (aptidão). Essa dinâmica é parte importante na alegação de Wilson, pois trata de uma questão tudo-ou-nada: apenas em sociedades eussociais ou verdadeiramente sociais, como as dos insetos, que o sacrifício individual pelo coletivo pode evoluir e se manter.

6. Veja a história (um tanto polêmica) da Sociobiologia aqui.

7. Para saber mais sobre Gould, leia esta matéria, esta ou esta.

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB/UFRJ), bolsista PIBIC em Taxonomia e Sistemática (LabEnt/UFRJ), filiado ao grupo de pesquisa Evolução, Moralidade e Política (CNPq/UFRRJ) e apaixonado pela abrangência da teoria evolutiva.

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