Enquanto o sol do meio dia paira sobre a floresta de abetos escandinavos, um enxame de pretendentes esperançosas levanta voo. São moscas dançarinas e está na hora de atrair um parceiro. Ziguezagueando e girando, as moscas mostram suas pernas peludas e suas asas largas e escuras. Elas inflam seus abdomes como balões de modo que pareçam ser maiores e mais atraentes para um parceiro em potencial.

De repente, o enxame se eletriza de excitação com a chegada de uma nova mosca, aquela pela qual todos estavam esperando: um macho. É hora do rebanho de fêmeas enfeitadas brilhar.

As moscas estão invertendo e reencenando o drama clássico do reino animal, no qual machs ávidos com suas plumagens deslumbrantes, seus chifres e outras características extraordinárias competem por uma chance de cortejar uma fêmea relutante. Essas competições entre machos pela escolha de fêmeas exigentes são consagradas na teoria da evolução como “seleção sexual”, com a escolha das fêmeas moldando a evolução dos instrumentos de sedução exibidos pelos machos ao longo das gerações.

No entanto, tem ficado cada vez mais claro que essa imagem tradicional da seleção sexual está lamentavelmente incompleta. Reversões dramáticas e óbvias do cenário de seleção, como o das moscas dançarinas, não são frequentemente observadas na natureza, mas pesquisas recentes sugerem que em toda a árvore da vida animal as fêmeas disputam a atenção dos machos muito mais do que se acreditava. Um novo estudo descobriu que em animais tão diversos como ouriços-do-mar e salamandras, as fêmeas estão sujeitas à seleção sexual  —  não tão severamente quanto os machos, mas o suficiente para fazer os biólogos repensarem o equilíbrio das forças evolutivas que moldam espécies em seus relatos da história da vida.

O novo trabalho lança luz em um contexto importante, a saber, o desequilíbrio apresentado pela pesquisa de seleção sexual. No passado, os cientistas relatavam evidências esparsas de seleção sexual feminina, isto é, de machos escolhendo fêmeas, mas por eles não terem motivos para investigá-la. Finalmente isso está mudando.

“Em comparação com o quanto trabalhamos no lado masculino, nós realmente não sabemos muito”, disse Tommaso Pizzari, um biólogo evolucionista da Universidade de Oxford que não estava envolvido com o novo artigo. “A seleção sexual em fêmeas ainda é relativamente desconhecida. Ainda é um território mal mapeado.”

Três machos de tetraz-cauda-de-faisão (Centrocercus urophasianus) posando em exibição para uma fêmea, que está no meio, em um comportamento chamado de “lekking”.

Brevemente mencionada em A Origem das Espécies e abordada mais extensivamente em A Descendência do Homem, o conceito de seleção sexual remonta aos primeiros escritos de Charles Darwin sobre seleção natural. Dentro da estrutura da seleção natural convencional, faz sentido que os indivíduos prefiram parceiros adequados. Mas um ponto chave da seleção sexual é que a atratividade em relação a parceiros em potencial pode ser um critério de seleção em si, independentemente de como isso afeta a aptidão. Membros de um sexo podem desenvolver características e comportamentos atraentes para o sexo oposto que entram em conflito direto com a seleção natural padrão, que é voltada para a sobrevivência. Levado ao extremo, isso pode resultar na exibição de penas pesadas e excepcionalmente alongadas de algumas aves do sexo masculino, por exemplo, que só são úteis nas competições de acasalamento encenada por eles.

A visão Vitoriana das fêmeas
Desde o início a ciência se concentrou nos machos como objeto de seleção sexual. Darwin viu as fêmeas como passivamente seletivas frente a machos desesperados. Ele estava aberto à ideia de que a seleção sexual pudesse funcionar em qualquer direção, mas as competições mais óbvias estava entre os machos — o que alimentava a noção de que a seleção sexual acontecia principalmente neles e que as fêmeas eram prêmios a serem ganhos. Desse modo, as fêmeas até podiam estar definindo os termos das competições de acasalamento, mas eram os machos que estavam realmente sendo remodelados através da evolução por essas escolhas.

A perspectiva de Darwin era típica de sua época e lugar, a Inglaterra da era Vitoriana. As teorias sobre a seleção sexual nasceram “na era Vitoriana, quando você tinha certos estereótipos sexuais sobre como as mulheres deveriam se comportar”, disse Rebecca Boulton, uma bióloga evolucionista da Universidade de Exeter, no Reino Unido. “E assim, porque o campo essencialmente cresceu naquela época, era como dizer: ‘É claro que as fêmeas não estão acasalando com vários machos. Claro que elas são tímidas ou exigentes.’”

Esse ponto de vista contribuiu para um viés onipresente em como a seleção sexual foi investigada no último século e meio, argumentam os pesquisadores por trás do novo estudo. Eles estimam que estudos sobre competição macho-macho e o fenômeno da escolha feminina são dez vezes mais comuns do que estudos que visam investigar o contrário.

“Muitas pessoas são influenciadas pela cultura em que vivem e pelas coisas que veem”, disse Salomé Fromonteil, um estudante de biologia evolutiva da Universidade de Uppsala na Suécia e na Universidade Ludwig Maximilian em Munique, e autor principal no estudo. “Somos influenciados pelo que lemos, e o que eles leem é que a seleção sexual funciona principalmente em machos”.

Fato é que as exceções existem, não são poucas e são inegáveis. Algumas que chamaram a atenção dos pesquisadores estão em espécies com “papéis sexuais” que contrariam o arranjo convencional, como nas moscas dançarinas. As fêmeas de jaçanãs (Jacana jacana) mantêm e defendem territórios ricos em parceiros sexuais — no caso, machos. Entre os cavalos-marinhos e peixes-cachimbo, os machos até assumem o trabalho de “gravidez” incubando internamente seus filhotes em uma bolsa especializada.

Porém, mesmo diante de tanta diversidade os cientistas que estudam a seleção sexual continuaram a adiar as observações iniciais de Darwin no século XIX. Era geralmente aceito que os machos,  com sua propensão para ornamentos e exibições de acasalamento,  experimentavam maiores pressões de seleção sexual.

“Claro, não é assim que a pesquisa deveria ser”, disse Tim Janicke, biólogo evolucionista do Centro de Ecologia Funcional e Evolutiva da Universidade de Montpellier, na França, e autor sênior do novo estudo. “Se o objetivo é descrever padrões gerais na natureza, precisamos de sínteses baseadas em dados.”

Em 2016, Janicke e sua equipe mediram a força da seleção sexual agindo em uma variedade de espécies animais e compararam os valores entre os sexos. Esse estudo, publicado na Science Advances, confirmou que os machos experimentam um grau mais alto de seleção sexual do que as fêmeas.

Mas, à medida que mais exemplos de espécies que provavelmente passariam pela seleção sexual feminina se acumulavam, Janicke e sua equipe foram surpreendidos por uma questão que seu estudo não havia abordado: quão comum é a seleção sexual entre as fêmeas? Eles começaram a se perguntar se era “algo raro ou se é realmente um padrão geral”, disse Janicke.

No início de 2020, Janicke e Fromonteil planejavam iniciar um estudo experimental sobre a seleção sexual em besouros para investigar essa questão. Mas então veio a pandemia de COVID-19 e as paralisações institucionais que ela desencadeou tornaram os experimentos de laboratório repentinamente inviáveis. Mas, diz Janicke, uma meta-análise dos dados do estudo de 2016 poderia ser feita mesmo em “confinamento”.

Para comparar a força relativa da seleção sexual em uma ampla variedade de espécies, os cientistas precisavam descobrir alguma forma de quantificar essa intensidade de seleção. Eles estabeleceram um método usando o gradiente de Bateman, uma medida que leva o nome do geneticista britânico do século XX Angus John Bateman.

Mais parceiros, mais seleção sexual
Bateman reconheceu que, embora os machos possam produzir muitos espermatozóides com baixo custo metabólico, as fêmeas precisam fazer investimentos relativamente altos em muito menos óvulos. Na década de 1940, sua pesquisa com moscas-das-frutas levou Bateman a propor que essa divergência fundamental no investimento em gametas separa as estratégias de acasalamento de machos e fêmeas: para maximizar sua capacidade reprodutiva, os machos podem buscar e competir rotineiramente por muitas parceiras sexuais, enquanto as fêmeas podem, em vez disso, evoluir para serem mais exigentes.

Outros pesquisadores construíram essa ideia, desenvolvendo o gradiente de Bateman para descrever os benefícios de aptidão de ter vários parceiros de acasalamento. A medição é a inclinação da linha que compara a produção reprodutiva com o número de eventos de acasalamento  — na verdade, ela mostra quão acentuadamente o número de descendentes de um organismo aumenta com o acasalamento. Quanto mais íngreme a inclinação positiva, maior o benefício de aptidão de mais eventos de acasalamento, o que na maioria das espécies significa ter mais parceiros. (Ao acasalar com vários machos em vez de apenas um, uma fêmea pode às vezes proteger suas apostas sobre qual parceiro produzirá a prole mais apta e saudável.)

“Se houver uma seleção positiva de ter mais parceiros de acasalamento, isso deve se traduzir em competição por parceiros de acasalamento”, disse Janicke. “E essa competição é basicamente a essência da seleção sexual darwiniana.” Por esse motivo, os gradientes de Bateman são uma forma comum de quantificar indiretamente a seleção sexual.

A partir de uma varredura da literatura científica, a equipe compilou 111 gradientes de Bateman calculados para fêmeas em 72 espécies de animais, englobando desde besouros, moluscos a mamíferos. Os gradientes variaram enormemente, mas se agruparam na faixa positiva. A equipe também descobriu, como esperado, que espécies com fêmeas “poliândricas”, isto é, que acasalavam com muitos machos, tinham valores de gradiente de Bateman consideravelmente maiores do que as espécies com fêmeas que geralmente acasalavam com um macho de cada vez.

As fêmeas dos besouros escarabeídeos Onthophagus sagittarius evoluíram pequenos chifres que podem ser úteis em competições por parceiros. Foto por Udo Schmidt.

As descobertas sugerem que  —  como há tempos era presumido em relação aos machos  —  as fêmeas obtêm um aumento de aptidão com acasalamentos múltiplos, e isso lança luz justamente em uma seleção sexual generalizada. Os gradientes Bateman femininos positivos não parecem ser tão grandes quanto os masculinos, disse Janicke, mas sua abrangência sugere a importância da seleção sexual na evolução das fêmeas, mesmo em espécies vistas como tendo papéis sexuais “típicos”.

Embora reconheça que o gradiente de Bateman é uma “medida poderosa para quantificar a seleção sexual”, Janicke observou que ele apenas reflete a seleção diretamente relacionada ao ato de acasalamento. Em espécies que geram profusões de ovos, como muitos peixes, bem como corais e outros invertebrados marinhos, também há oportunidades de seleção após o acasalamento, com os ovos competindo pelo acesso ao esperma, ou os espermatozoides tendo recursos de escolha que afetam a fertilização. O estudo de Janicke não se estendeu a esse tipo de seleção sexual pós-acasalamento. Portanto, é possível que ocorra ainda mais seleção sexual feminina do que o novo estudo sugere, mas que trabalhos futuros precisarão testar essa possibilidade.

Para Pizzari, o estudo “confirma algo que penso que estamos, como comunidade, começando a perceber há algum tempo: que a seleção sexual é potencialmente muito importante nas fêmeas em várias espécies, similarmente como acontece aos machos”.

Explicações alternativas, no entanto, ainda precisam ser testadas. Alguns dos gradientes que a equipe de Janicke identificou podem estar enraizados na atratividade inerente de certas fêmeas a determinados machos devido à sua produção reprodutiva. “Pode ser que as fêmeas que têm mais ovos para produzir […] atraiam muito mais machos simplesmente porque têm um valor reprodutivo mais alto”, disse Pizzari. Nesse caso, não seria que mais acasalamentos fossem mais benéficos para as fêmeas, “é que os machos estão mais interessados em acasalar com fêmeas mais férteis”.

Se for esse o caso, entretanto, Jonathan Henshaw, biólogo evolucionista da Universidade de Freiburg, na Alemanha, que também não esteve envolvido no estudo, acha que testes empíricos podem ajudar a isolar esse efeito. “Se você realmente quisesse saber qual é o efeito causal do acasalamento no sucesso reprodutivo, a melhor coisa seria fazer como os outros fizeram e realmente manipular o número de parceiros disponíveis para as fêmeas individualmente”, disse ele.

Os experimentos também podem ajudar a revelar se a seleção sexual está acontecendo nessas fêmeas na natureza e como a seleção pode estar influenciando as características que as fêmeas usam para competir umas com as outras. “O potencial para […] diferentes mecanismos de seleção sexual existe”, disse Boulton. “Se é isso o que está realmente acontecendo, é um pouco mais difícil de saber.”

Confrontos e decorações
Agora que os cientistas estão se tornando mais conscientes de que devem procurar evidências da seleção sexual das fêmeas pelos machos, os traços e comportamentos que ela cultiva nameas podem se tornar mais óbvios. O galo-lira (Tetrao tetrix) era considerados um exemplo clássico de seleção sexual masculina: os machos têm uma coloração distinta e vívida e competem pelas fêmeas em elaboradas arenas de cortejo chamadas leks. Mas evidências recentes sugerem que enquanto os machos estão dando seu show, as fêmeas também estão disputando agressivamente suas escolhas. As fêmeas das moscas-das-frutas do Mediterrâneo (Ceratitis capitata) adotam uma abordagem muito semelhante. Certas fêmeas do besouro do esterco têm até chifres desenvolvidos que podem ser usados para lutar com outras fêmeas em disputas pelo acesso aos machos.

Galo-lira (Tetrao tetrix), com fêmea à esquerda e macho à direita.

Mas esse tipo de combate intra-sexual não é provável de se desenvolver na maioria das fêmeas, argumenta Boulton. Brigar traz um risco inerente de lesões corporais  — um preço que machos podem pagar mais facilmente, já que precisam apenas sobreviver até a cópula. O sucesso reprodutivo feminino leva tempo: elas precisam viver o suficiente para botar todos os ovos e, às vezes, cuidar de todos recém nascidos. “Considerando os machos, eles meio que têm menos a perder”, disse ela.

Os ornamentos e as competições que as fêmeas usam para ganhar parceiros às vezes podem ter passado despercebidos porque são mais sutis e parecem versões simplificadas de ornamentos e de competições exibidas pelos machos. Por exemplo, as fêmeas de Malurus, uma ave, são submetidas à seleção sexual em relação ao seu bico e à coloração da plumagem, independentemente de existirem pressões semelhantes incidindo sobre os machos. Os frangos domésticos (Gallus gallus), seja macho ou fêmea, possuem cristas ornamentais carnudas. As galinhas preferem galos com cristas maiores como parceiros, mas os galos fornecem mais esperma para as galinhas com cristas maiores também.

Essas características de ornamentação em fêmeas às vezes são vistas como subprodutos da seleção sexual de seus ancestrais masculinos —  “dimorfismo sexual permeável”, disse Pizzari. Mas ele argumenta que os machos podem prestar atenção a esses ornamentos, o que traz uma nova adaptação e um significado evolutivo diferente nas fêmeas. 

Outra característica que os homens comumente parecem identificar é o tamanho do corpo feminino, disse Boulton. Os machos tendem a preferir fêmeas maiores e mais pesadas. Essa preferência pode estar enraizada no valor do tamanho como um sinal da saúde geral e do potencial reprodutivo das mulheres, mas também pode ser uma plataforma para a competitividade feminina.

Não importa como as fêmeas respondem à seleção sexual na natureza, as novas descobertas ajudam a reiterar o quanto dessa seleção passou despercebida pela ciência por muitas décadas. Parte do estereótipo rígido em torno da pesquisa sobre a seleção sexual provavelmente foi informado pela cultura e por visões de mundo e atitudes patriarcais.

O estereótipo da seleção sexual centrada no macho também pode ter persistido tão teimosamente “porque há um fundo de verdade nisso  —  que na grande maioria das espécies os machos ganham mais com acasalamentos adicionais do que as fêmeas”, disse Henshaw. A armadilha é que “é meio fácil passar dessa verdade para um estereótipo oposto que diz que ’em geral, as fêmeas não ganham nada com acasalamentos extras’. Mas então você meio que foi longe demais.”

Diferenças físicas extremas entre os sexos em algumas espécies também podem ter embotado a busca pela seleção sexual mais oculta, mas generalizada entre as fêmeas. “Se você tem uma espécie que mostra esse notável dimorfismo sexual, você pode não começar a estudar a seleção intra-sexual entre as fêmeas”, disse Janicke, porque a seleção masculina pareceria a explicação padrão.

E, no entanto, apesar do peso das suposições humanas e de nossos preconceitos, um padrão está começando a aparecer: a seleção sexual feminina é a norma. “De um modo geral, a seleção sexual opera em fêmeas”, disse Fromonteil.

Janicke planeja atualizar continuamente o banco de dados com gradientes Bateman. “O banco de dados vai crescer cada vez mais, e veremos que outros tipos de questões ainda podemos responder com isso. Mas estou muito confiante de que esse padrão de seleção sexual para fêmeas não mudará”, disse ele.

Tradução do texto Mating Contests Among Females, Long Ignored, May Shape Evolution, escrito por Jack Buehler e disponível em Quanta Magazine.

Mário Pereira Gomes
Mário Pereira Gomes

Graduado em História (UFPE), transhumanista e divulgador científico.

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