Apesar desse raciocínio se basear numa premissa correta, que é aquela que assume que os indivíduos têm motivações inerentes em relação à sobrevivência e reprodução, esse modo de pensar não está certo. Os motivos datam, pelo menos, do século XIX.

Naturalmente, nascem mais indivíduos do que conseguem se reproduzir. Esse é o motor do que Charles Darwin chamou de seleção natural: como os recursos do ambiente não são infinitos, apenas uma determinada parcela de indivíduos está apta para chegar à idade adulta e, assim, deixar descendentes. Considerando que “recurso”, além de incluir comida, também inclui o sexo oposto, isso deve nos dizer alguma coisa. Para os machos, as fêmeas são como comida ou água: elas podem ser monopolizadas — não pela ingestão, mas pela gestação.

Aqui entra a seleção sexual, que fornece um ambiente competitivo onde vários machos de uma mesma espécie disputam pelas mesmas fêmeas. Levando em conta que um indivíduo é geneticamente único e carrega o potencial de dar origem a toda uma população de indivíduos mais ou menos semelhantes a ele, quando um macho, com sucesso, insemina uma fêmea, ele está diminuindo as chances de outros machos passarem seus genes para as próximas gerações. Em outras palavras, ele está matando, geneticamente, outros indivíduos de sua própria espécie.

O indivíduo que obtém sucesso na reprodução está perpetuando os próprios genes, a própria linhagem, e não toda a espécie. Com a contínua seleção dos genes deste indivíduo, logo toda a população se assemelhará a ele, e isso em detrimento de outros indivíduos lá de trás que não se pareciam exatamente com ele, mas que todavia eram, digamos, da mesma espécie.

Uma objeção mais óbvia seria dizer que “mesmo assim, está havendo uma continuação da espécie, porque um macho precisa de uma fêmea com compatibilidade genética, e se há compatibilidade genética é da mesma espécie”. Mas isso também não é bem verdade. Nem todos os indivíduos de uma mesma espécie conseguem se reproduzir, e nem sempre os motivos são claros. Além disso, alguns indivíduos vistos como pertencentes a espécies diferentes se reproduzem perfeitamente.

Espécie?
Essencialmente, na verdade, espécies não existem. Sim, é isso mesmo: espécies não existem. O termo é um construto humano útil que obedece às nossas limitações tanto epistemológicas como, por mais irônico que seja, biológicas. Os critérios que usamos para definir uma espécie animal não se aplicam às espécies de bactérias e nem às de plantas, sendo todos eles mais ou menos arbitrários ao grupo de organismos estudado.

Filogenia humana a partir dos fósseis. As barras azuis significam a abundância fóssil conhecida daquela população. De: https://bit.ly/3m4Vct2

O que existem, na verdade, não são espécies, mas populações de indivíduos mais ou menos semelhantes geneticamente. A população, inclusive, é que evolui, e evolui continuamente durante uma escala de tempo muito maior do que aquela em que seres humanos vivem suas vidas, o que impossibilita que consigamos enxergar essas populações mudando como massinha de modelar.

Muito da noção de que os organismos se comportam de maneira benevolente em relação à própria espécie vem da nossa capacidade de agir assim entre nós mesmos. Nós somos o único animal capaz de apresentar um altruísmo genuíno em relação a desconhecidos que seja capaz de durar por longos períodos. A cultura humana realmente faz a diferença.

Os outros animais não têm uma cultura altamente cumulativa como nós temos (o que não significa dizer que eles não possuam sistemas culturais complexos). Entre eles, faltam contextos onde o altruísmo possa se sustentar a longo prazo, enquanto sobram contextos que favoreçam o egoísmo não só dos genes, mas de seus veículos também, os indivíduos.

A (a)moralidade da natureza
Para o mundo natural, tudo o que importa é a reprodução diferencial de genes. Se o efeito de um ou mais genes, seja esse efeito moralmente bom ou mau, faz com que o indivíduo deixe mais descendentes que outros indivíduos da mesma população, a seleção favorecerá a perpetuação desses genes para as gerações seguintes. Exemplos não faltam:

Representação do comportamento das H. vulnerata. De “The Triumph of Sociobiology”,  p. 106.

Competição física:
Em populações onde os machos são maiores e mais fortes que as fêmeas, é comum que se veja interações físicas violentas entre indivíduos em idade reprodutiva. Nesses táxons eles geralmente possuem armamentos especiais que evoluem para permitir que consigam ou matar seus rivais ou, pelo menos, fazer com que desistam. Chifres, maior tamanho, caninos maximizados e músculos com maior capacidade de hipertrofia são exemplos de estruturas que evoluíram para o conflito.

Dois besouros da família Dynastinae numa interação agonística. Seus chifres são armamentos especiais que evoluíram por seleção sexual às custas de outros besouros.

Aborto induzido em primatas não-humanos:
Em populações de babuínos-gelada existe a mesma dinâmica vista em leões, onde um novo macho tem mais a ganhar matando os filhotes alheios do que não fazendo isso. Só que, aparentemente, as fêmeas dos gelada evoluíram uma estratégia contrária que, em vez de passar por todo o processo de gestação só para o novo macho matar seus recém nascidos, elas mesmas passam por processos hormonais estressores que terminam por induzir a gestação ao aborto. Esse fenômeno se chama efeito Bruce.

Patrulhas e assassinato:
Em chimpanzés (Pan troglodytes), os machos frequentemente formam grupos de patrulhamento de território. Eles vasculham os limites de sua própria área não atrás de alimento, mas de qualquer irregularidade que envolva a presença de indivíduos estranhos. O patrulhamento difere do forrageio porque na patrulha existe coordenação, silêncio e a procura ativa por qualquer sinal que o grupo julgue anormal. Tendo que qualquer comportamento em grupo reduz os custos para o indivíduo, quando a patrulha encontra um indivíduo estranho e ele calha de estar sozinho, as chances de que ele acabe morto são esmagadoras. Vários assassinatos frutos de “xenofobia” em patrulhamento de território já foram registrados.

Chimpanzés enfileirados coordenadamente em patrulha.

Considerações finais
Longe de argumentar que a cooperação seja inexistente na natureza ou que a noção de espécie precise ser abandonada, o texto teve como finalidade desmistificar concepções ingênuas de comportamento animal.

Vimos que, no mundo natural, existem mais contextos onde o conflito pode irromper e menos onde a cooperação pode, e que a seleção é feita a nível dos genes, havendo competição considerável dentro do que se pode chamar de espécie; o que, no mínimo, torna implausível dizer que os indivíduos são altruístas em relação ao grupo como um todo. 

Se existisse um princípio benevolente mantendo a organização dentro de uma mesma “espécie”, o leão não seria infanticida, os chimpanzés não assassinariam ninguém, as fêmeas de gelada não fariam aborto, machos não entrariam em competições mortais e, bem, búfalos se sacrificariam aos montes. “Para o bem da espécie” e noções afins são concepções humanas que não têm vez na biologia.


Para saber mais

1. O Gene Egoísta (1976) e A Grande História da Evolução (2009), ambos de Richard Dawkins.
2. Para um material mais especializado sobre seleção de parentesco e egoísmo genético, existe Adaptation and Natural Selection (1966), de George C. Williams, e The Genetical Evolution of Social Behaviour I The Genetical Evolution of Social Behaviour II (ambos de 1964), de William D. Hamilton.
3. Em relação à biologia do comportamento em si, existe The Triumph of Sociobiology (2001) e o manual Comportamento Animal: Uma Abordagem Evolutiva (2010), ambos de John Alcock.

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB/UFRJ), bolsista PIBIC em Taxonomia e Sistemática (LabEnt/UFRJ), filiado ao grupo de pesquisa Evolução, Moralidade e Política (CNPq/UFRRJ) e apaixonado pela abrangência da teoria evolutiva.

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