Resumo (N. T.)
Por muito tempo os biólogos estiveram em desacordo, às vezes ferozmente, sobre a origem ou a funcionalidade de algum traço de comportamento ou morfologia. O infanticídio em primatas acontece porque os machos recém chegados ao grupo estão estressados ou é devido aos ganhos genéticos que os agressores obtêm assassinando os filhotes alheios? O clitóris das fêmeas humanas é o subproduto da evolução e desenvolvimento do pênis ou é uma estrutura com a função de estreitar os laços afetivos durante a relação sexual? O envelhecimento acontece devido à deterioração bioquímica das células ou é um processo positivo à ontogenia dos sistemas biológicos? Essas e outras questões permearam os debates do século passado, e tudo graças ao desentendimento generalizado de que existem vários níveis complementares na análise do mesmo atributo. O presente texto é a tradução de uma resenha crítica da época que, apesar de estar mais ou menos datada, é relativamente didática e ainda pode ser útil nos dias de hoje — já que muitos dos debates acalorados sobre origem, função e estrutura, seja entre biólogos ou interessados, continuam caindo no mesmo erro.
Ainda existe muita confusão entre os biólogos sobre como responder questões de “por que animal A exibe traço X?”. Um exemplo recente dessa confusão é o debate sobre a razão das fêmeas humanas terem clitóris. Gould (1987) argumentou que o clitóris é um efeito colateral do desenvolvimento da seleção por pênis nos homens e, seguindo Symons (1979), alegou que os orgasmos femininos não são adaptações. Alcock (1987) respondeu que, já que o clitóris não é nem inútil nem formado imperfeitamente, como seria normal de se esperar de acordo com a hipótese de Gould, explicações funcionais são necessárias. Alcock (p. 4) cita várias possibilidades (veja Smith, 1984), e enfatiza a ideia de que o clitóris facilita o orgasmo, assim atuando como um mecanismo discriminatório de seleção de parceiros e controle de paternidade por parte das fêmeas. Em sua resposta, Gould (1987, p. 4) afirma que Alcock “não entendeu o ponto central da discussão”, e que é “logicamente incorreto equiparar utilidade atual à origem evolutiva”.
Existem duas razões pelas quais Gould e Alcock discordam, muito embora ambos estejam falando da mesma coisa. A primeira é semântica. Para Gould (1987, p. 4), o clitóris deve ser uma estrutura “não-adaptativa” se sua origem evolutiva se deu como um subproduto do desenvolvimento da seleção em outro contexto; para Alcock, por outro lado, orgasmos femininos e clitóris são “adaptações” se eles parecem funcionar para aumentar o sucesso reprodutivo. Embora a hipótese de Gould não fale nada quanto à relação do clitóris com o sucesso reprodutivo feminino, ele próprio (1987, p. 18) pôs sua hipótese como diretamente contrária às explicações baseadas na reprodução diferencial (e. g., Hrdy, 1981), descartando esta última. Isso aponta em direção à segunda e mais básica razão para a discordância, ou seja, que o clitóris, como outros aspectos do fenótipo de um animal, pode ser explicado através de várias perspectivas diferentes e não excludentes entre si. O erro em separar claramente estes ‘níveis de análise’ leva tanto ao mal entendido terminológico quanto à polêmica injustificada.
A confusão sobre os níveis explicativos e os argumentos inconclusivos que dela se seguem acomete todos os ramos da biologia, e a literatura está cheia de exemplos. Um clássico é a chamada controvérsia “nature-nurture”[1] (e. g., Lorenz, 1950 vs. Lehrman, 1953), que começou em relação a se certos comportamentos em filhotes de aves são inatos ‘ou’ adquiridos através da experiência. Após duas décadas de debate inconclusivo, tornou-se evidente para Mayr (1961), Tinbergen (1963) e Lehrman (1970) que a falta de consenso se deveu principalmente a questões semânticas e conceituais, em vez de discrepâncias de fato. Em seu artigo de 1961, Mayr observou que os biólogos conceituam a pesquisa de duas maneiras: biólogos funcionais estudam causalidade ‘proximal’ e biólogos evolucionistas se concentram em causalidade ‘distal’. Fatores proximais operam no dia a dia dos indivíduos, e os fatores distais, ou ultimais, derivam da história evolutiva. Tinbergen sugeriu que cada uma dessas categorias deveria ser subdividida. Assim, questões proximais ou ‘como?’, exigem investigações tanto de ontogenia individual (e. g., efeitos da idade e da experiência) quanto de substratos fisiológicos, incluindo mecanismos neuronais, hormonais e bioquímicos. Questões distais ou ‘por quê?’ exigem compreensão tanto das origens evolutivas quanto do valor adaptativo atual. Assim, responder ao ‘como’ envolve comparar as consequências evolutivas das variantes naturais dispostas pelo tempo ecológico, enquanto que responder ao ‘por quê’ implica desvendar a história dos fenômenos no tempo geológico.
Recentemente tornou-se evidente que, pelo menos no comportamento, há uma quinta abordagem de pesquisa que não foi especificamente considerada por Mayr e Tinbergen. Ela trata de processos mentais presumidos, tanto cognitivos quanto emocionais[2]. Estes foram discutidos em termos de ‘consciência’ por Romanes (1883), ‘construções hipotéticas’ por MacCorquodale & Meehl (1948), ‘drives’ por Lorenz (1950) e ‘percepção’, ‘pensamento’ e ‘motivação’ por vários autores recentes (e. g., Griffin, 1984; Colgan, 1986). Embora as capacidades mentais dos animais sejam, em última instância, baseadas em processos fisiológicos, considerações de desempenho mental muitas vezes produzem hipóteses que, levando em conta nosso estado atual de conhecimento, não se encaixam confortavelmente em interpretações puramente mecanicistas. Por exemplo, estudos sobre se as abelhas de mel, Apis mellifera, possuem mapas cognitivos e fazem uso deles na volta de locais desconhecidos (Gould, 1986), se papagaios (Pepperberg, 1987) ou primatas (Savage-Rumbaugh, 1984) podem usar símbolos humanos para caracterizar novos objetos, e como os animais fazem escolhas de acasalamento ou decisões ideais de forrageio (Shettleworth, 1984) produzem insights sobre a função mental que não são imediatamente redutíveis aos processos fisiológicos. Para especificar hipóteses neste tipo único de investigação, uso o termo genérico “processos cognitivos”.
Em resumo, existem quatro níveis diferentes de análise: filogenia, consequências funcionais (valor adaptativo), ontogenia e processos imediatos; este último inclui processos cognitivos e processos fisiológicos. Toda hipótese em biologia está submetida a este quadro; a concorrência entre alternativas ocorre dentro e não entre os níveis (Mayr, 1982, pp. 59–77). Isso significa que existem vários tipos de respostas ‘corretas’ para qualquer pergunta sobre causalidade. Qual categoria de resposta é mais satisfatória ou interessante é uma questão de treinamento e gosto; debater a questão, como se as alternativas fossem mutuamente exclusivas, é geralmente infrutífero.
Considere, por exemplo, a seguinte questão: ‘Por que canários machos cantam canções específicas?’ Em termos de processos fisiológicos, hipóteses alternativas podem apontar para mecanismos hormonais ativacionais versus organizacionais, ou para estruturas neuroanatômicas fixas versus variáveis (veja Konishi, 1985). Em relação aos processos cognitivos, talvez os machos cantores estejam “zangados” com invasões territoriais, ou “amorosos” em relação a potenciais parceiras (Mulligan & Olsen, 1969). Processos ontogenéticos alternativos poderiam apontar para a possibilidade dos filhotes aprenderem a vocalização com os pais versus reproduzirem vocalmente uma cópia não-aprendida (revisado em Kroodsma & Miller, 1982). As consequências funcionais do canto podem estar em atrair parceiros ou repelir rivais (Catchpole, 1982). Finalmente, em termos de origens evolutivas ou filogenia, talvez canções simples e repetitivas caracterizem todos Carduelinae, ou talvez as canções dos canários sejam únicas e altamente derivadas, relacionadas à especiação recente no gênero Serinus (ver Payne, 1986). Todas essas hipóteses são testáveis e cinco delas podem estar certas simultaneamente.
Embora a maioria dos avanços conceituais em relação aos níveis de análise tenha ocorrido há 25 anos, ainda hoje apenas uma minoria de biólogos categoriza explicitamente suas hipóteses dessa forma. Em parte, como resultado, poucas estruturas ou comportamentos são compreendidos a partir de todas as perspectivas possíveis. Além disso, muitos dos debates raivosos na biologia evolutiva aparentemente originaram-se como hipóteses alternativas que, na verdade, somente estavam em diferentes níveis analíticos (Tabela 1). Uma das razões pelas quais os protagonistas de tais debates agem tão prepotentemente é a de que todos eles podem, de fato, estar certos, já que as hipóteses não necessariamente contradizem umas às outras.
Gould (1987, p. 6) encerrou alegando que “boa ciência precisa, acima de tudo, de hipóteses testáveis; sejam elas desenvolvimentais ou adaptacionistas”, mas que “de toda forma, as explicações que tratam do desenvolvimento são mais rigorosas e operacionais do que as especulações adaptacionistas, que são necessariamente infrutíferas, intestáveis e continuam a permear nossa literatura”. Por qual razão Gould acredita que hipóteses desenvolvimentais sobre a origem de um comportamento ou morfologia são geralmente mais poderosas, parcimoniosas e testáveis do que as ‘adaptacionistas’ é algo que eu desconheço. Também não está claro por que Gould se recusa a reconhecer que sua hipótese, se extrapolada para o nível de consequências funcionais (valor adaptativo), prevê que o clitóris é essencialmente neutro ao sucesso reprodutivo feminino — o que é uma proposição testável e falsificável (Alcock, 1987). A primeira declaração de Gould é de fácil concordância, desde que as hipóteses testadas como alternativas estejam no mesmo nível de análise.
Notas (do T.)
1. Isso não quer dizer que todo tipo de debate quanto ao inato-adquirido (“nature-nurture”) esteja superado, só que, naquela época, os pesquisadores estavam de fato falando de processos majoritariamente complementares, como filogenia (“inato”, ou nature) e desenvolvimento (“adquirido”, ou nurture). O debate ainda é necessário no sentido de descobrir quais os estímulos-chave responsáveis pelo desenvolvimento, que é geneticamente codificado pela filogenia. Veja mais aqui.
2. Atualmente, a dita “quinta abordagem”, que o autor chama de “processos cognitivos”, entra nas causas proximais como uma operação que executa o comportamento (mesmo que, como o autor mesmo admite, a cognição não possa ser reduzida a processos mecanicistas).
Para aprofundamento
A última edição (2018) de Animal Behavior trata dos níveis de análise de maneira mais atualizada, além de apresentar a literatura consensual em ciências evolutivas comportamentais. Para um exemplo do modelo de Tinbergen-Mayr na prática, clique aqui.

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.