Dias atrás, indo para casa em um trem cheio de gente, ouço, dentre conversas aleatórias e sob um tom mais grosseiro, duas vozes. Eram vozes de dois homens, um mais velho e outro mais jovem, no que era claramente um desentendimento. A discussão seguiu mais ou menos assim:
Indivíduo A: P*rra, mermão, presta atenção aí…
Indivíduo B: Presta atenção o quê? Eu pedi licença.
Indivíduo A: Tu saiu esbarrando em mim, mermão.
Indivíduo B: Claro, tu não me deu licença. Queria o quê? Aliás, tu fala direito comigo…
Indivíduo A: Fala direito por quê?
Indivíduo B: Porque tu falou p*rra pra mim.
Enquanto isso, o vagão havia ficado quieto para ouvir. Foi nessa hora em que B, como quem sai de uma discussão cantando vitória e exalando soberba, ficou mais calmo, mas esse também foi o momento em que A tratou de tentar reverter a situação e crescer para cima dele, pois a calmaria do público e a atitude de B havia acabado de irritá-lo ainda mais:
Indivíduo A, visivelmente incomodado pelos olhares curiosos e o silêncio, tentando intimidar e começando a gesticular: Eu não falei p*rra para você. Tá maluco?
Indivíduo B: Beleza, tranquilo. Então não falou.
Constrangido com os olhares e como quem deseja melhorar a própria imagem de uma acusação diminuidora, A revidou:
Indivíduo A, falando alto e visivelmente mais agressivo: Se eu quisesse falar, eu falaria agora. Tá maluco, rapaz? Eu não te xinguei, mas se for pra te xingar eu xingo agora!
Qual seria, afinal, a explicação para o comportamento desses homens, principalmente a razão da atitude de A após ter tido o status ferido na frente de tantos espectadores? Diria um típico sociólogo que, dadas as tendências patriarcais da nossa sociedade, os homens são criados e condicionados pelos seus parentes e pares de modo a não levarem desaforo para casa.
Mas é só isso? Ainda restaria esclarecer os motivos dos pais socializarem seus filhos dessa forma (e se a resposta for a mesma, restaria explicar por que os pais dos pais socializaram seus filhos da mesma forma, e assim ad infinitum) e não de outra, ou por que, dentre tantos contextos culturais, sociais e históricos distintos, os homens continuam sendo, em média, tipicamente mais agressivos do que as mulheres. A perspectiva da sociologia não está errada, mas está incompleta.
Entendendo um comportamento
O comportamento humano, como o canto de um pássaro, pode ser explicado através de mais de uma perspectiva. Por exemplo, em vez de analisarmos a fala humana somente a nível social, onde há a fase de aquisição das primeiras palavras e o desenvolvimento, com os sotaques e as dinâmicas socioculturais, das formas de falar, também podemos analisá-la a nível evolutivo e funcional, onde explicamos sua história filogenética e função adaptativa.
Essa foi a proposta do etologista Nikolaas Tinbergen, que em 1963 argumentou que existem quatro questões na explicação de um determinado comportamento. Hoje amplamente aceito, o modelo propõe que existem duas questões distais (a razão adaptativa de um dado comportamento existir da maneira que ele existe e não de outra maneira, também chamado de valor adaptativo, e a história evolutiva do comportamento, chamada de filogenia), e duas questões proximais (a fisiologia e a anatomia envolvidas no comportamento, nomeado também de mecanismo, e o desenvolvimento do comportamento conforme a maturidade individual, que leva o nome de ontogenia).

As quatro questões de Tinbergen. Traduzido de: https://bit.ly/3gaHN1v
Violência e status
De volta ao caso, a grande coincidência é que aquilo tudo acontecia justamente enquanto eu lia sobre a formação de hierarquias pelo status e a relação disso com o homicídio — que, dentre todas as culturas, costuma ser muito mais frequentemente visto entre homens do que entre mulheres. No trecho, explicavam os criminologistas Russil Durrant e Tony Ward[2] que:
Toda a evidência disponível concorda com a alegação de que homens são mais dispostos do que as mulheres para empregar a força física [na resolução de conflitos][2, 3, 4]. Esses achados asseguram que isso é verdade para diferentes culturas, períodos históricos e diferentes idades no desenvolvimento[5, 6]. […] Uma explicação distal sugere que essa diferença entre os sexos emerge porque existem maiores benefícios (evolucionários) aos machos e maiores custos (evolucionários) às fêmeas no uso da agressão física como um meio de alcançar objetivos. […] Porquê os homens, assim como os machos na maioria das outras espécies, investem (em média) menos na prole do que as mulheres, eles são o sexo mais disposto a aumentar seu sucesso reprodutivo através da competição com outros homens pelo acesso a parceiras adicionais. Isso resulta numa maior variância reprodutiva entre os machos[7, 8, 9].
Em outras palavras, para um macho deixar mais descendentes, basta que faça sexo com quantas fêmeas quiser (se seu status e seus genes assim deixarem). Mas isso não é verdade para as fêmeas. Como uma fêmea, pela mesma lógica, aumentaria sua frota de descendentes, contando que fêmeas só podem ser inseminadas por um macho a cada gestação? A estratégia que as fêmeas empregam, então, é a de escolher o macho de melhor qualidade — isto é, de boa aparência e, principalmente, de melhor status. É dessa assimetria sexual que surge o padrão de conflito de macho contra macho pelo monopólio das fêmeas, visto que uma fêmea gestante é um recurso em temporária escassez.
A essa altura você, leitor, provavelmente está pensando que nem todas as nossas atitudes são pensadas com a finalidade de fazer com que deixemos mais descendentes (ainda mais hoje, numa civilização bem diferente de uma savana pré-histórica). Sobre isso, tenha algo em mente: embora nossas atitudes não sirvam necessariamente às necessidades biológicas do passado, em última instância elas refletem tais necessidades, só que em um ambiente diferente. Como apontou[10] Appel, “a explicação última do comportamento de uma espécie ou indivíduo é derivada de como este comportamento ajudou a maximizar o seu sucesso reprodutivo [no passado].”
Mais adiante, os autores descrevem os atributos dimórficos (ou seja, as diferenças físicas que diferenciam um sexo do outro) que tanto podem preceder como podem proceder da escolha da fêmea:
[…] é importante notar que a agressão masculina é um componente comum às espécies que são poligínicas, o que reflete o cenário gradativo em relação à variância reprodutiva que surge quando alguns machos conseguem, com sucesso, excluir outros machos da arena de acasalamento. Embora o pair-bonding e as relações monogâmicas sejam centrais ao sistema de acasalamento humano, a evidência discutida anteriormente claramente indica que seres humanos são, de certa forma, poligínicos, e que existe mais variância masculina do que feminina em questão de sucesso reprodutivo. Numa espécie poligínica, é comum que os machos sejam significativamente maiores e mais formidáveis do que as fêmeas, pois tamanho e força estão sujeitos a fortes pressões seletivas. Embora os machos humanos não apresentem nenhum armamento anatômico especial, como galhadas, chifres ou dentes caninos maximizados, as diferenças em tamanho e força são amplamente consistentes com este padrão. As diferenças entre os sexos em altura e peso são relativamente modestas. Todavia, homens têm 61% mais massa muscular total, 75% mais massa muscular braçal e um tronco 90% maior e mais forte em relação às mulheres[11]. Adicionalmente, homens têm ossos mais fortes, maior capacidade respiratória, reflexos mais rápidos e uma maior tolerância a atividades arriscadas e perigosas[12]. Em suma, embora não possamos descartar completamente o possível papel de outras pressões seletivas na evolução das diferenças de dimorfismo sexual, a explicação mais parcimoniosa sugere que esses traços sejam (em grande parte) produto da seleção sexual.
Em um exemplo análogo, assim como o sexo está para a reprodução, os conflitos masculinos estão para o status, e este para o sexo oposto. Importantemente, em espécies natural e exclusivamente monogâmicas, como o macaco gibão, o dimorfismo tende a zero (isto é, as fêmeas são anatomicamente idênticas aos machos e vice versa) e por isso a violência se torna altamente custosa nessa espécie. Um dimorfismo mais saliente, dessa forma, é um indicativo de que a violência seja e tenha sido (parcialmente, como na nossa espécie, ou integralmente, como na dos gorilas, chimpanzés, babuínos e outros primatas) um comportamento adaptativo.
Isso explica, em última (e até, digamos, média) instância, as pré-disposições masculinas à violência. Embora, quanto ao caso dos homicídios, que, como dito antes, são um “universal masculino”, a coisa seja um pouco mais diferente, o incidente do trem é um exemplar de como o conflito masculino se dá, e de como aquele poderia terminar:
Em sua revisão das dinâmicas situacionais da agressão masculina, Polk[13] notou que, entre homens, na maioria das ocasiões, o homicídio parece surgir conforme aumenta a escalada de disputas e argumentações aparentemente triviais. […] Parece absurdo, em plena luz do dia, atacar ou até mesmo matar alguém por algo tão banal como uma aposta de 2 dólares ou pelo preço de uma garrafa de cerveja. Mesmo assim, as análises dos homicídios cometidos por e contra homens claramente indicam que tais crimes ganham forma através de argumentações e disputas mais ou menos triviais, e frequentemente em espaços públicos em frente à vista de curiosos[14, 15]. De uma perspectiva evolucionária, embora os motivos sejam banais, existe algo muito mais “importante” em jogo: o status. O status social é importante porquê está confiavelmente correlacionado ao sucesso reprodutivo em ambientes ancestrais.
É importante destacar que a mudança brusca de humor de A, de ligeiramente irritado para muito irritado e agressivo, foi engatilhada pelo input da influência exercida pela acusação de B, que sujou a sua imagem ou status, diminuindo seu nível na hierarquia social em frente aos olhos de tanta gente. Durrant e Ward complementam:
De acordo com o modelo de dominância-prestígio do status humano, a negociação das hierarquias sociais na nossa espécie é carregada por duas estratégias distintas, mas igualmente viáveis: dominância e prestígio[16]. Hierarquias de dominância são comuns entre primatas sociais e envolvem efetivamente o uso da força, ou da ameaça de força, a fim de obter notoriedade no ranking social e a partir daí usufruir dos benefícios dados a indivíduos de alto status. Portanto, as estratégias de dominância envolvem a deferência dos indivíduos de baixo ranking social pelos de alto ranking tendo como parâmetro o medo e a intimidação. Em contraste, embora o prestígio seja uma abordagem igualmente viável para alcançar status social, ele abrange a livre condescendência dos outros baseado em [níveis de inferiores de] habilidades, conhecimento e sucesso. Enquanto a dominância é filogeneticamente mais antiga no alcance das metas de status social, Henrich e Gil-White argumentam[17] que o prestígio se tornou uma importante via para o ganho de status na evolução humana por causa do papel central do aprendizado cultural.
Semelhantemente à tática intimidadora dos gorilas de bater no peitoral e a dos chimpanzés de “fechar a cara” e mostrar seus afiados caninos, a situação em questão é mais bem inteligível à luz da dinâmica de dominância do que da de prestígio. Ainda mais importante, essas estratégias de demonstrar força física pela ameaça e pela intimidação sinalizam, em animais sociais, incluindo os seres humanos (que, pela linguagem ou pelos gestos, costumam “crescer” para cima do oponente), intenções que, se escritas, diriam “se eu quiser eu posso te machucar, e estou, com isso, tentando te dissuadir”, pois “com a tua deferência eu possa ganhar status, subir no ranking social às tuas custas e aumentar o meu sucesso reprodutivo potencial em detrimento do teu.” Em muitas vezes, aliás, o conflito representa uma espécie evolutiva de teoria dos jogos.

Chimpanzés no que ficou conhecido como A Guerra dos Quatro Anos. Mais: https://bit.ly/3g97eAy
“Quer dizer que é tudo instintivo?”
Antes que você possa fazer uma conclusão apressada, os autores também mencionam a variação na ocorrência e intensidade da violência e da agressão, que também depende dos níveis de socialização (como os indivíduos são criados e inseridos, pelos amigos e conhecidos, na sociedade):
[…] as taxas de violência (e particularmente a violência masculina) são substancialmente menores na maioria das sociedades contemporâneas em relação às sociedades de caçadores-coletores, como mostra o passado histórico e pré-histórico[18]. […] As taxas de violência masculina variam de maneiras significantes através das classes sociais. Ou seja, existem importantes diferenças individuais na tendência à agressão que refletem (em parte) a exposição a condições sociais e ambientais diferentes.
Quanto a uma suposta determinação genética, eles asseguram, logo em seguida, que:
É importante reconhecer que, embora a violência tenha uma base evolutiva, isso não significa, de nenhuma forma, que estejamos insinuando que ela seja determinada geneticamente, ou mesmo que seja um ato inevitável. Certamente, como argumentam[19] Buss e Shackelford, uma abordagem evolutiva “sugere fortemente que a agressão não é uma estratégia unitária, monolítica ou que acontece independente do contexto. Em vez disso, ela é uma estratégia altamente dependente de contexto, engatilhada somente em situações nas quais problemas adaptativos específicos são confrontados e os benefícios adaptativos têm maiores chances de ser colhidos.”
Por fim, eles concluem salientando a falta de sucesso na teoria da socialização em explicar a abrangência intercultural da violência e a sua diferenciação se manifestar logo nos primeiros estágios da infância:
O nível distal de explicação é o mais saliente para explicar as diferenças de gênero na violência e na agressão física. Afirmando isso nós não estamos sugerindo que outros tipos de explicação — i. e., socialização diferencial de papéis de gênero[20, 21] — sejam irrelevantes. Na verdade, explicações de vários níveis de análise são relevantes para o nosso entendimento das diferenças entre os sexos em relação à agressão e em como essas diferenças podem variar através do tempo e do espaço. Contudo, como convincentemente argumenta Archer[22], a teoria da socialização não consegue explicar o motivo das diferenças na agressão emergirem tão precocemente no desenvolvimento e o porquê dessas diferenças serem tão robustas através das culturas e dos períodos históricos[23].
Felizmente, B não estava afim de continuar, talvez por ser mais jovem e estar em melhor forma do que A, o que fez a discussão acabar sem que nada de pior houvesse acontecido. A moral da história é clara: o comportamento social humano é derivado de fatores tanto naturais (distais, de origem evolutiva) como de fatores aprendidos (proximais, de origem cultural) e, como indivíduos que vivem numa era pós-Darwin, devemos reconhecer isso.

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.
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