Sobre o texto
Esta é a transcrição de parte do oitavo capítulo, Gênero, da obra de Steven Pinker Tabula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. O livro é de 2004 e algumas coisas aconteceram de lá para cá. Uma delas é que David Reimer, chamado por Pinker de Brenda, cometeu suicídio. Você entenderá quando chegar no ponto 10. 

Muitas diferenças entre os sexos, evidentemente, não têm nenhuma relação com a biologia. Estilos de penteados e roupas variam caprichosamente através dos séculos e das culturas, e em décadas recentes a participação em universidades, profissões qualificadas e esportes mudou de predominantemente masculina para meio a meio ou predominantemente feminina. Pelo que sabemos, algumas das atuais diferenças entre os sexos podem ser igualmente efêmeras. Mas as feministas de gênero afirmam que todas as diferenças entre os sexos com exceção das anatômicas, provêm das expectativas de pais, colegas de brincadeiras e sociedade. A cientista radical Anne Fausto-Sterling escreveu[1]:

O fato biológico fundamental é que meninos e meninas têm genitália diferente, e é essa diferença biológica que leva os adultos a interagir diferentemente com diferentes bebês a quem, convenientemente, codificamos com as cores rosa ou azul para não ter de espiar dentro das fraldas em busca de informação sobre o sexo da criança.

Mas a teoria do rosa e azul conta com cada vez menos credibilidade. Eis doze tipos de indícios de que homens e mulheres diferem mais do que apenas na genitália:

1. As diferenças entre os sexos não são uma característica arbitrária da cultura ocidental, como a decisão de dirigir pela direita ou pela esquerda. Em todas as culturas humanas, homens e mulheres são vistos como possuidores de naturezas diferentes. Todas as culturas dividem o trabalho por sexo, com mais responsabilidade pela criação dos filhos para as mulheres e mais controle das esferas pública e política para os homens. (Essa divisão do trabalho emergiu mesmo em uma cultura em que todos se haviam comprometido a erradicá-la, os kibutzim israelenses.) Em todas as culturas os homens são mais agressivos, mais propensos a roubar, a cometer violência letal (incluindo guerra) e têm maior probabilidade de cortejar, seduzir e trocar favores por sexo. E em todas as culturas existe o estupro, bem como proibições contra ele.[2]

2. Muitas das diferenças psicológicas entre os sexos são exatamente as que um biólogo evolucionista que conhecesse apenas suas diferenças físicas prediria.[3, 4, 5, 6, 7] Por todo o reino animal, quando a fêmea tem de investir mais calorias e risco em cada filho (no caso dos mamíferos, ao longo da gestação e da amamentação), ela também investe mais nos cuidados com a prole depois do nascimento, pois é mais custoso para a fêmea substituir um filho do que para um macho. A diferença em investimento é acompanhada por maior competição entre os machos por oportunidades para acasalar-se, pois acasalar-se com muitos parceiros aumenta mais para o macho do que para a fêmea a probabilidade de multiplicar o número de filhos. Quando o macho médio é maior do que a fêmea média (o que ocorre no caso de homem e mulher), isso é indicador de uma história evolutiva de maior competição violenta entre os machos por oportunidades de acasalamento. Outras características físicas dos homens, como puberdade em idade mais avançada, maior força quando adulto e vida mais curta, também indicam uma história de seleção por competição arriscada.

Diferença média entre machos e fêmeas de duas espécies igualmente próximas de nós, chimpanzés (muito agressivos) e bonobos (muito menos agressivos). Em comparação a eles e levando em conta o grau de diferença na nossa própria espécie, onde estamos? Provavelmente no meio. N. E. (Nota do Editor).

3. Muitas das diferenças entre os sexos são amplamente encontradas em outros primatas e, de fato, em toda a classe dos mamíferos.[8, 9] Os machos tendem a competir mais agressivamente e a ser mais polígamos; as fêmeas tendem a investir mais na criação dos filhos. Para muitos mamíferos, uma extensão territorial maior é acompanhada por maior habilidade para orientar-se usando a geometria espacial (em contraste com lembrar-se de pontos de referência individual). Mais frequentemente é o macho quem tem a maior extensão territorial, e isso ocorre com os caçadores-coletores humanos. A vantagem masculina no uso de mapas mentais e na rotação tridimensional de objetos pode não ser uma coincidência.[10]

4. Geneticistas descobriram que a diversidade do DNA nas mitocôndrias de diferentes pessoas (que homens e mulheres herdam da mãe) é muito maior que a diversidade do DNA nos cromossomos Y (que os homens herdam do pai). Isso indica que por dezenas de milênios os homens tiveram maior variação que as mulheres no êxito reprodutivo. Alguns homens tiveram muitos descendentes e outros não tiveram nenhum (o que nos deixou com um pequeno número de cromossomos Y distintos), enquanto um maior número de mulheres tiveram um número de descendentes mais igualmente distribuído (deixando-nos com um maior número de genomas mitocondriais distintos). Essas são precisamente as condições que causam a seleção sexual, na qual os machos competem por oportunidades para acasalar-se e as fêmeas escolhem os machos de melhor qualidade.[11]

Cerca de 10 mil anos atrás, no Neolítico, houve uma queda abrupta na descendência masculina, que coincidiu com uma subida abrupta da descendência feminina. O fenômeno bate com o período de sedentarização e acúmulo de bens, que gerou uma intensificação na seleção sexual. N. E. De Zeng et al. 2018, “Cultural hitchhiking and competition between patrilineal kin groups explain the post-Neolithic Y-chromosome bottleneck”.

5. O corpo humano contém um mecanismo que faz com que o cérebro dos meninos e o das meninas difiram durante o desenvolvimento.[12, 13, 14] O cromossomo Y desencadeia o crescimento de testículos em um feto masculino, que secretam androgênios, os hormônios caracteristicamente masculinos (incluindo a testosterona). Os androgênios têm efeitos duradouros sobre o cérebro durante o desenvolvimento fetal, nos meses seguintes ao nascimento e durante a puberdade, e têm efeitos transitórios em outros períodos. Os estrogênios, hormônios sexuais caracteristicamente femininos também afetam o cérebro por toda a vida. Receptores de hormônios sexuais são encontrados no hipotálamo, no hipocampo e na amígdala no sistema límbico do cérebro, bem como no córtex cerebral.

6. Os cérebros dos homens diferem visivelmente dos das mulheres de vários modos.[15, 16, 17] Os homens têm cérebros maiores com mais neurônios (mesmo descontando o tamanho do corpo), embora as mulheres possuam uma porcentagem maior de matéria cinzenta (como homens e mulheres são igualmente inteligentes no geral, não sabemos a importância dessas diferenças). Os núcleos intersticiais no hipotálamo anterior e um núcleo da stria terminalis, também no hipotálamo, são maiores nos homens; foram relacionados ao comportamento sexual e à agressão. Porções das comissuras cerebrais, que ligam os hemisférios esquerdo e direito, parecem ser maiores nas mulheres, e seus cérebros podem funcionar de modo menos assimétrico que os dos homens. O aprendizado e a socialização podem afetar a microestrutura e o funcionamento do cérebro humano, obviamente, mas provavelmente não o tamanho de suas estruturas anatômicas visíveis.

7. A variação no nível de testosterona entre diferentes homens, e no mesmo homem em diferentes períodos ou em diferentes momentos do dia, correlaciona-se com a libido, a autoconfiança e o impulso por dominância.[17, 18] Criminosos violentos têm níveis mais altos que criminosos não violentos; advogados que atuam em julgamentos têm níveis mais elevados que os que tratam da burocracia. As relações são complexas por várias razões. Ao longo de uma vasta faixa de valores, a concentração de testosterona na corrente sanguínea não tem importância. Algumas características, como a habilidade espacial, têm seu pico em níveis moderados, e não elevados. Os efeitos da testosterona dependem do número e distribuição de receptores para a molécula, e não apenas de sua concentração. E o estado psicológico do indivíduo pode afetar os níveis de testosterona e vice-versa. Mas existe uma relação causal, embora complicada. Quando mulheres em preparo para uma cirurgia de mudança de sexo recebem androgênios, melhoram nos testes de rotação mental e pioram nos de fluência verbal. O jornalista Andrew Sullivan, que por problemas de saúde sofreu uma redução em seus níveis de testosterona, descreve[19] os efeitos da injeção dessa substância:

A sensação intensa e súbita de uma injeção de testosterona lembra a que se tem em um primeiro encontro com uma garota ou quando falamos para uma plateia. Eu me sinto revigorado. Depois de uma injeção, quase entrei numa briga pela primeira vez na vida. Sempre acontece um pico de desejo sexual — e toda vez me pega desprevenido.

Embora os níveis de testosterona em homens e mulheres não coincidam, as variações de nível têm os mesmos tipos de efeito nos dois sexos. Mulheres com níveis elevados de testosterona sorriem com menos frequência e têm mais casos extraconjugais, uma presença social mais marcante e até um aperto de mão mais forte.

8. As forças e fraquezas cognitivas das mulheres variam conforme a fase de seu ciclo menstrual. Quando os níveis de estrogênio estão altos, as mulheres tornam-se ainda melhores nas tarefas que tipicamente executam melhor que os homens, como a fluência verbal. Quando os níveis estão baixos, elas ficam melhores em tarefas que os homens tipicamente fazem melhor, como a rotação mental. Uma variedade de motivos sexuais, incluindo suas preferências por homens, também varia com o ciclo menstrual.[20]

9. Os hormônios masculinos ou androgênios têm efeitos permanentes sobre o cérebro em desenvolvimento, e não apenas efeitos transitórios sobre o cérebro adulto. Meninas com hiperplasia adrenal congênita (HAC) têm produção excessiva de androstenodiona, o hormônio androgênio que ganhou fama graças ao batedor de beisebol Mark McGwire. Embora seus níveis de hormônio caminhem para o normal logo depois do nascimento, essas meninas crescem com jeito de moleque, brincam mais de lutar, demonstram mais interesse em caminhões do que em bonecas, têm maiores habilidades espaciais e, quando mais velhas, têm mais fantasias sexuais e atração por outras garotas. As que são tratadas com hormônios somente em fase mais avançada da infância apresentam padrões de sexualidade masculina quando se tornam jovens adultas, incluindo excitação rápida por imagens pornográficas e impulso sexual autônomo centrado em estimulação genital, além do equivalente à polução noturna.[21]

Meninas com HAC têm preferência por brinquedos mais semelhante aos meninos sem HAC e menos semelhante às suas irmãs sem HAC (respectivamente, 55.30-67.89-33.39). N. E. De Spencer et al. 2021, “Prenatal androgen exposure and children’s gender-typed behavior and toy and playmate preferences”.

10. O supremo experimento imaginário para separar a biologia da socialização seria pegar um bebê do sexo masculino, mudar-lhe o sexo com uma cirurgia e fazer com que seus pais o criem como uma menina e que as outras pessoas o tratem como tal. Se o gênero for socialmente construído, essa criança deverá ter a mente de uma menina normal; se depender de hormônios pré-natais, deverá sentir-se como um menino preso em corpo de menina. Notavelmente, esse experimento foi feito na vida real — não por curiosidade científica, é claro, mas como resultado de doença e acidentes. Um estudo examinou 25 meninos que nasceram sem pênis (um defeito congênito conhecido como extrofia cloacal), foram castrados e criados como meninas. Todos eles apresentaram padrões masculinos de brincadeiras turbulentas e atitudes e interesses tipicamente masculinos. Mais da metade declarou espontaneamente ser menino, um deles quando tinha apenas cinco anos.[22]

Em célebre estudo de caso, um menino de oito meses perdeu o pênis em uma circuncisão malfeita (não por um mohel, para meu alívio, mas por um médico inepto). Seus pais consultaram o famoso sexólogo John Money, que dissera que “a natureza é uma estratégia política dos que se empenham em manter o status quo das diferenças entre os sexos”. Ele aconselhou aos pais que deixassem os médicos castrarem o bebê e implantar-lhe uma vagina artificial, e os pais então criaram a criança como uma menina sem lhe contar o que acontecera.[23] Fiquei sabendo desse caso quando cursava a faculdade, nos anos 70; apresentaram-no como prova de que os bebês nascem sexualmente neutros e adquirem o gênero com base no modo como são criados. Um artigo do New York Times daquela época informou que Brenda (que nascera Bruce) “tem atravessado a infância satisfeita em sua condição de menina”.[24] Os fatos foram suprimidos até 1997, quando veio à tona que desde bem pequena Brenda sentia-se um menino preso em corpo de menina e a um papel sexual.[25] Ela rasgava vestidos enfeitados, rejeitava bonecas em favor de armas, preferia brincar com meninos e até insistia em urinar em pé, Aos catorze anos estava tão infeliz que decidiu que viveria a vida como um rapaz ou acabaria com ela; então seu pai finalmente contou-lhe a verdade. Brenda se submeteu a uma nova série de operações, assumiu a identidade masculina e hoje está feliz casado com uma mulher. 

Bruce/David quando ainda era Brenda, à direita, ao lado de seu irmão gêmeo, Brian Reimer. N. E.

11. As crianças com síndrome de Turner são geneticamente neutras. Possuem um único cromossomo X, herdado da mãe ou do pai, em vez dos dois cromossomos X normais nas meninas (um da mãe, o outro do pai) ou o X e o Y dos meninos (o X da mãe, o Y do pai). Como o plano corporal da fêmea é o default nos mamíferos, essas crianças têm aparência de meninas e agem como meninas. Os geneticistas descobriram que o corpo dos pais pode imprimir molecularmente genes no cromossomo X para que se tornem mais ou menos ativos nos corpos e cérebros em desenvolvimento de seus filhos. Uma menina com síndrome de Turner que recebe o cromossomo X de seu pai pode ter genes que são evolutivamente otimizados para meninas (pois um X paterno sempre resulta em uma filha). Uma menina com síndrome de Turner que recebe o X da mãe pode ter genes que são evolutivamente otimizados para meninos (pois um X materno, embora possa resultar em qualquer um dos sexos, atuará sem oposição somente em um filho, que não tem uma contrapartida aos genes X em seu insignificante cromossomo Y). E, de fato, as meninas com síndrome de Turner diferem psicologicamente dependendo de qual de seus pais lhe deu o X. As que receberam o X do pai (que é destinado a uma menina) eram melhores na interpretação da linguagem corporal e de emoções, no reconhecimento de rostos, no manejo das palavras e no relacionamento com as pessoas em comparação com as que receberam o X da mãe (que só é totalmente ativo em um menino).[26]

12. Ao contrário do que popularmente se acredita, os pais nos Estados Unidos atualmente não tratam filhos e filhas de modos muito diferentes.[27, 28, 29, 30] Uma recente avaliação de 172 estudos abrangendo 28 mil crianças constatou que meninos e meninas recebem graus semelhantes de incentivo, carinho, cuidados, restrições, disciplina e clareza de comunicação. A única diferença substancial foi que aproximadamente dois terços dos meninos eram desincentivados a brincar com bonecas, especialmente por seus pais, por medo de que se tornassem homossexuais. (Meninos que preferem brinquedos de meninas frequentemente vêm a ser homossexuais, mas proibir-lhes os brinquedos não altera o resultado.) Tampouco as diferenças entre meninos e meninas dependem de observarem comportamento masculino em seus pais e feminino em suas mães. Quando Joãozinho tem duas mães, age como um menino tanto quanto se tivesse mãe e pai.


As coisas não vão bem para a teoria de que meninos e meninas nascem idênticos a não ser pela genitália, com todas as outras diferenças resultando do modo como a sociedade os trata. Se isso fosse verdade, seria uma coincidência espantosa que em toda sociedade, no cara-ou-coroa que atribui a cada sexo uma série de papéis, a moeda caia sempre do mesmo lado (ou que o resultado de uma jogada decisiva da moeda no alvorecer da espécie houvesse sido mantido sem interrupção ao longo de todas as revoluções das últimas centenas de milhares de anos). Seria igualmente espantoso que, invariavelmente, as atribuições de papéis arbitrárias da sociedade correspondessem às predições que um biólogo marciano faria para nossa espécie baseado em nossa anatomia e na distribuição de nossos genes. Pareceria estranho que os hormônios que nos fazem começar a vida como machos ou fêmeas também modulassem as características mentais tipicamente masculinas e femininas, tanto decisivamente no desenvolvimento inicial do cérebro, como em menores graus ao longo de toda a nossa vida. Seria ainda mais esquisito que um segundo mecanismo genético diferenciando os sexos (o imprinting genômico) também instalasse talentos tipicamente masculinos e femininos. Finalmente, duas predições fundamentais da teoria da construção social — que meninos tratados como meninas crescem com mentes de meninas e que as diferenças entre meninos e meninas podem ser atribuídas a diferenças no modo como os pais os tratam — caíram por terra.

Obviamente, só porque muitas diferenças entre os sexos têm suas raízes na biologia isso não significa que um sexo é superior, que as diferenças emergirão para todas as pessoas em todas as circunstâncias, que a discriminação contra uma pessoa baseada em seu sexo é justificada ou que as pessoas devem ser coagidas a fazer coisas típicas de seu sexo. Mas tampouco as diferenças deixam de ter consequências.

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB/UFRJ), bolsista PIBIC em Taxonomia e Sistemática (LabEnt/UFRJ), filiado ao grupo de pesquisa Evolução, Moralidade e Política (CNPq/UFRRJ) e apaixonado pela abrangência da teoria evolutiva.

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