Algum tempo atrás, a então ministra Damares Alves afirmou que “menino veste azul e menina veste rosa”, uma clara alusão às expectativas tradicionais de gênero. Até então, nada fora do comum: a tentativa de justificação do status quo das diferenças de tratamento entre homens e mulheres é o que se espera de uma pastora evangélica. O problema foi que, e acreditem se quiser, o dono de uma página tradicionalista até bem prestigiada na rede social Facebook saiu em defesa de Damares procurando razões nas ciências evolutivas comportamentais:

Mais uma vez os progressistas estão atacando a ministra Damares por uma de suas falas, mais especificamente que meninos usam azul e meninas usam rosa. O argumento que usam é basicamente que essa distinção de cores não existiria de fato […]. Então vamos refutar esse argumento pós moderno de uma vez. Trago um artigo científico que demostra que a preferência por cores tem forte componente biológico sexual, e que não é uma questão unicamente de preferência particular ou uma construção social arbitrária. […] Uma explicação alternativa para a evolução da tricromacia é a necessidade de discriminar mudanças sutis na cor da pele devido a estados emocionais e sinais sócio-sexuais; bem como verificar a saúde da cria pela cor do seu rosto, mais uma vez, as mulheres podem ter aprimorado essas adaptações por seus papéis como cuidadores e “empatia”.

Eu fui dar uma olhada no artigo, e ele é menos extraordinário do que o alegado. Bem no início, os autores assumem que “apesar da abundante evidência de diferença sexual em outros domínios visuais e especificamente em tarefas de percepção de cor, não existe evidência conclusiva para a existência de diferenças sexuais na preferência por cores”. Isso já seria suficiente para ter cautela. Agora, como essa conduta “convenientemente científica” de conservadores e tradicionalistas é recorrente, usarei o caso como um exemplo e tentarei expor os erros mais frequentes. 

Os autores do artigo buscam evidências para diferenças sexuais na preferência por cores, e para isso a metodologia envolve um punhado de participantes ingleses e chineses (cerca de 208 contando todos eles) de idades entre 20 e 26 anos. Os voluntários são pedidos para escolher as cores que lhes são mais agradáveis frente a um espectro ou matiz, tudo num curto espaço de tempo. Os resultados realmente encontram uma diferença média entre os homens e mulheres da amostra, com a média feminina concentrada no local mais purpúreo-avermelhado e a média masculina mais focada no azul-esverdeado.

O veredito dos autores é que isso corrobora a hipótese de que a percepção das cores tem características biológicas evoluídas recentemente, e aqui eles realmente mencionam o comportamento de cuidado parental e a empatia feminina. O que há de errado nisso tudo?

Uma amostra de poucos indivíduos oriundos de dois países industrializados dificilmente configura evidência definitiva para um suposto padrão comportamental universal com raízes em um ambiente ancestral. Participantes de outras nacionalidades deviam ter sido convocados, e o experimento poderia incluir também pessoas de culturas que não conhecem a civilização da forma que nós conhecemos — indivíduos de agrupamentos de caçadores-coletores, o tipo de organização social que mais chega perto da condição que a nossa espécie viveu a maior parte do tempo. 

Outro problema é que os participantes eram todos adultos, o que é mais um contratempo à conclusão de que preferência das cores seja inata e explicada pela seleção sexual. Uma pesquisa mais recente analisou a preferência de 120 crianças com idade abaixo de dois anos em relação a brinquedos, cores e formas, e não encontrou qualquer padrão preferencial, específico de cada sexo, relacionado à cor azul ou rosa. Em vez disso, as evidências sugerem que meninos e meninas aprendem a gostar dessas cores mais tarde, visto que são as cores de seus brinquedos preferidos. Ou seja, por mais que possam existir componentes biológicos na escolha por brinquedos, não exatamente o mesmo é verdade para as cores, que podem ser apenas uma consequência.

Também existe algo mais simples. Em vez de haver uma pesquisa com uma amostragem maior, mais pessoas de culturas diferentes e toda uma logística mais bem trabalhada, é possível ser parcimonioso e olhar para a história. A própria variação temporal para a preferência pelas cores é uma evidência contrária à regularidade e a universalidade suposta, já que podemos constatar que nem sempre as cores azul e rosa foram atribuídas a meninos e meninas.

Uma questão digna de nota é que a fala de Damares não quis dizer que, em média, cores mais azuladas sejam preferidas pelo sexo masculino e mais rosadas, preferidas pelo sexo feminino, que foi mais ou menos o que a pesquisa alegou, mas sim que, normativamente, a sociedade é melhor regida por normas de comportamento que socializem meninos e meninas diferentemente de acordo com determinadas expectativas. “Normativamente” porque o foco é não a descrição de fatos da realidade, de tendências probabilísticas entre indivíduos, mas a prescrição de uma conduta moral. Até parece que Damares se importa se a biologia concorda ou não com suas alegações. Faça-me rir.

Muito me inquieta pensar no que leva alguém a recorrer a uma tese embasada na teoria da evolução de Charles Darwin para defender a fala de uma pessoa fundamentalmente religiosa como Damares Alves, que provavelmente nem sequer acredita que sejamos todos macacos. É como se a biologia fosse opcional e útil apenas para o comportamento, e justamente porque o outro lado, a esquerda, não vê a biologia comportamental com bons olhos, mas para a evolução do corpo e da morfologia no geral, onde a esquerda reafirma a seleção natural, Adão e Eva fossem mais importantes. Isso mostra que, no jogo político, a conveniência em se opor ao outro lado vem na frente da coerência em defender algo que está certo independente de ideologia.

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.