A genética da homossexualidade é um tema controverso. Embora as preferências sexuais tenham um componente genético, nem um único gene isoladamente tem um efeito significativo no comportamento sexual. Um estudo publicado em agosto de 2019 na Science com uma amostra de 500.000 pessoas reforçou esse ponto. Não existe um marcador genético confiável o suficiente para prever a sexualidade, seja hétero ou homossexual.

“Não existe um ‘gene gay’”, afirmou Andrea Ganna, geneticista importante do MIT e de Harvard. De fato, não existe um gene único nem para a heterossexualidade. Curiosamente, essa é a mesma fala de grupos, normalmente religiosos, que tentam argumentar que a homossexualidade é uma escolha influenciada pelo ambiente ou um comportamento aprendido e, portanto, de acordo com as mesmas doutrinas, moralmente errada e “pecaminosa”.  

Mas a questão toda é muito simples. Apesar de, como dito, não haver um gene único que determine a homossexualidade, a preferência e orientação sexuais têm base genética. Não há um gene, mas dezenas, talvez centenas de genes para a homossexualidade. Especificamente, há cinco loci no genoma humano candidatos como predisposição inata para desenvolver uma orientação para o mesmo sexo, e isso de acordo com pesquisas recentes. Estimativas mostram que 25% dos fatores que influenciam a preferência sexual vêm da genética.

A genética do comportamento homossexual poderia produzir resultados sociopolíticos diversos. Segundo um outro estudo publicado na Science, este pela socióloga Melinda C. Mills, atribuir a orientação sexual à genética pode melhorar os direitos civis e reduzir o estigma. Porém, há receio de que isso forneça uma ferramenta para uma suposta intervenção ou para a ‘cura gay’, sabe-se lá como essa cura seria feita. Além disso, a homossexualidade era classificada como patologia há pouco tempo, e o comportamento homossexual ainda permanece como crime em mais de 50 países (alguns deles punidos com pena de morte).

Parece necessário e pedagógico apontar a causa última da existência da variação homossexual. Se a homossexualidade está no DNA, qual seria sua função na dinâmica evolutiva, uma vez que homossexuais tem um sucesso reprodutivo supostamente reduzido por não deixarem prole? Isto é, se eles deixam em média menos descendentes que heterossexuais, como que esse comportamento consegue se manter através das gerações? Por que tal variação foi mantida durante o tempo evolutivo? Qual seu valor adaptativo? Se não é um distúrbio como outrora se pensava, qual sua vantagem e papel?

A natureza da homossexualidade
Para além da base genética e molecular, biólogos comportamentais, psicólogos e antropólogos de linha evolutiva vêm demonstrando que o comportamento homossexual está associado a benefícios sociais e grupais. Há pesquisas interessantes que conjecturam como homens com orientação para o mesmo sexo demonstram maior generosidade e proteção em relação aos sobrinhos. Nesse sentido, a homossexualidade funcionaria no contexto da perpetuação genética familiar (veja seleção de parentesco), uma maneira alternativa ou não-reprodutiva de reprodução. Dito de outra forma, o indivíduo homossexual nesse cenário é o “ajudante do ninho”: alguém que, apesar de não deixar descendentes por si mesmo, ajuda seus parentes genéticos a deixarem descendentes.

E isso não é mera conjectura. Paul Vasey, um psicólogo especialista em sexualidade comparada, realizou estudos em Samoa, na Polinésia, influenciado pelo modelo da seleção de parentesco. Ele descobriu que homossexuais compensariam a falta de filhos ao promover ou apoiar a aptidão reprodutiva de seus irmãos e irmãs, contribuindo, inclusive financeiramente, e cuidando dos sobrinhos e afilhados. “Genes gays” compartilhadas com sobrinhas e sobrinhos que determinam a orientação sexual podem ser transmitidos.

Fundamentando todas essas variáveis explicativas está a psicologia evolutiva. Essa nova área de estudos sugere que os mesmos genes que combinam para o desenvolvimento da homossexualidade também estão presentes em homens héteros e resultam em traços psicológicos que tornam homens heterossexuais mais atraentes para mulheres, ou as mulheres heterossexuais mais atraentes para os homens.

Segundo Qazi Rahman em seu livro Born Gay: The Psychobiology of Sex Orientation (“Nascido Gay, A Psicobiologia da Orientação Sexual”, em tradução livre), as mulheres tendem a gostar de certos traços e comportamentos mais tipicamente femininos nos homens, traços que favorecem a paternidade e empatia. De acordo com essa hipótese, uma quantidade pequena desses alelos aumenta as chances de sucesso reprodutivo do portador desses genes, porque o torna atraente para o sexo oposto. Homens com traços de amabilidade são inegavelmente mais atraentes para as mulheres em comparação com homens mais agressivos.

Eventualmente um membro da família pode receber uma “porção” maior destes genes, que refletem na sua orientação sexual e acompanhada de outros eventos hormonais e desenvolvimentais resultam na homossexualidade. Como esee alelo traz as vantagens reprodutivas mencionadas, ele permanece no pool gênico, a totalidade genética de uma dada população, através das gerações.

Novas evidências
Essa hipótese acaba de receber uma evidência surpreendente a partir de estudos genômicos. De acordo com um estudo envolvendo participantes dos Estados Unidos e Reino Unido publicado recentemente na Nature Human Behavior, agora há uma base para afirmar que os efeitos genéticos associados ao comportamento homossexual também estão associados a uma vantagem de acasalamento entre heterossexuais.

Os pesquisadores analisaram os efeitos genéticos do comportamento homossexual em comparação com pessoas de orientação heterossexual em um estudo de associação ampla do genoma (GWAS, na sigla original) envolvendo 477.522 pessoas. Eles também estimaram os mesmos efeitos em um estudo de GWAS com 358.426 pessoas dos mesmos países, que só tiveram parceiros do sexo oposto, ou seja, heterossexuais, que relataram quantos parceiros tiveram na vida.

Os pesquisadores descobriram que os efeitos genéticos associados ao comportamento sexual de orientação homossexual também foram associados a ter mais parceiros sexuais do sexo oposto entre indivíduos tipicamente heterossexuais. Eles sugerem que o número de parceiros sexuais em héteros é um indicador de sucesso reprodutivo durante a evolução. Esses efeitos genéticos, no final das contas, podem ajudar a explicar a persistência da homossexualidade ao longo da evolução da espécie humana. De maneira simplificada, os “genes gays” também encontram-se em héteros, e podem ter, neles, conferido vantagens adaptativas.

Os autores observam, porém, que há uma série de limitações para esse estudo e que seus resultados devem ser interpretados com cautela: os dados usados estão restritos a uma amostra de indivíduos de ascendência europeia no Reino Unido e nos EUA e, portanto, capturam uma pequena fração da diversidade genética e comportamental humana. 

É provável que, com o avanço da ciência, o status quo e as expectativas socioculturais sejam afetados — uma vez que todos esses achados têm grande peso contexto sociocultural.
Seja como for, todos as evidências disponíveis amontoam a uma literatura ainda mais ampla sobre a inegável naturalidade do comportamento homossexual, e tudo indica que é questão de tempo até existir uma teoria unificada para a evolução da sexualidade heterodivergente.

Samuel Fernando
Samuel Fernando

É biólogo, estudante de engenharia de computação e vinculado a um grupo de pesquisa em neurociência computacional na Universidade Federal do ABC.

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