A maioria das controvérsias, senão todas, em torno da Psicologia Evolucionista podem ser atribuídas ao velho debate natureza vs. criação, o “nature or nurture”, ou “inato ou adquirido”, que, por sua vez, está intimamente entrelaçado (e talvez seja idêntico) ao problema do dualismo mente-cérebro: nossos corpos são produtos da natureza, e nossas mentes, muitos acreditam, são produtos da criação, ou desenvolvimento, cultura, do ambiente. 

A rejeição do dualismo cérebro-corpo deve, portanto, resolver o debate natureza-criação. Na verdade, há duas resoluções. No estudo do corpo de um organismo, a primazia da “natureza” — um conjunto de propriedades funcionais pan-humanas herdadas — é indiscutível. Se o cérebro e a organização do corpo são profundamente semelhantes, então a “natureza” também deve formar as bases do cérebro. 

A importância da criação — aprendizagem e desenvolvimento — é, no entanto, indiscutivelmente importante para compreender o cérebro. A equivalência total da organização do cérebro e do corpo, então, implica que a “criação” formaria os fundamentos da anatomia! Surpreendentemente, essas duas perspectivas são equivalentes, como explicarei mais adiante. Primeiro, porém, vou mostrar como outras duas soluções para o debate natureza-criação podem ser rejeitadas.

Interações gene-ambiente
Uma tentativa comum de resolver o debate natureza-criação é invocar interações genes-ambiente — somos igualmente o produto de ambos. Essa tentativa é falha. As interações gene-ambiente são invocadas em dois contextos distintos. O primeiro é o desenvolvimento de nossos fenótipos universais incrivelmente complexos.

Ambos, genes e ambiente, estão intimamente envolvidos em praticamente todas as etapas da ontogenia. Isso é verdade, mas é uma afirmação vazia. Como genes poderiam desempenhar qualquer papel no desenvolvimento de fenótipos se eles não interagirem com o ambiente (tudo que não é um gene)? Uma vez que um gene (não regulatório) é transcrito, todo o restante será, a partir de então e rigorosamente, o ambiente. 

Essa suposta resolução para o debate natureza-criação, comumente invocada por estudiosos da evolução, não tem conteúdo científico algum. A questão vital da ontogenia é como os genomas conseguem produzir fenótipos intrincadamente estruturados quase idênticos. Uma resposta parcial é que, dentro das espécies (e muitas vezes até mesmo entre espécies intimamente relacionadas), a grande maioria dos genes são idênticos em todos os indivíduos. 

Igualmente importante, o ambiente (tudo o que não é gene) também é quase exatamente o mesmo para cada indivíduo. As propriedades da miríade de compostos químicos necessários para o desenvolvimento do organismo e os princípios pelos quais reagem são idênticos para todos os indivíduos. Proteínas produzidas por genes idênticos, que então regulam a produção de outras proteínas, são essencialmente idênticas para todos os indivíduos. 

Fatores que variam, como temperatura, podem ser mantidos dinamicamente dentro de uma faixa estreita. A natureza altamente estável do genoma e a estabilidade do ambiente em que organiza o desenvolvimento explicam porque, quando comparados com a variabilidade potencial, eles poderiam, em princípio, expressar todos os humanos como basicamente idênticos — nos parecemos muito mais do que sapos, árvores ou cupins.

O segundo contexto em que as interações gene-ambiente são invocadas é o estudo de diferenças individuais. Embora possa parecer que o estudo das diferenças fenotípicas está intimamente relacionado ao estudo de fenótipos, ele não está. Por definição, estudar as diferenças fenotípicas ignora toda a estrutura imensamente complexa que esses fenótipos têm em comum. A afirmação de que as diferenças residuais nos fenótipos podem ser causadas por diferenças residuais nos genótipos e por diferenças nos ambientes e/ou interações entre os dois não é vazia, mas tem pouca relevância para a Psicologia Evolucionista. 

Mesmo que desempenhem um papel extremamente importante, os aspectos invariáveis do genoma e do ambiente são ignorados na investigação de diferenças fenotípicas. Mas é a porção universal invariável do genoma (a grande maioria dos genes), bem como os aspectos invariáveis e variáveis do ambiente, nos quais a PE está principalmente interessada. 

A confusão entre a afirmação vazia de que nossos fenótipos universais são o produto conjunto de ambos genes e ambiente/meio, com outras não tão vazias que afirmam que diferenças nos fenótipos podem ser atribuídas a diferenças genéticas residuais, diferenças ambientais ou sua interação, podem levar erroneamente à conclusão de que a variabilidade ambiental está profundamente implicada no desenvolvimento de adaptações codificadas por genes universais. 

É muito improvável que tal conclusão seja verdadeira. Se a lei de Murphy tem alguma força, a maioria das perturbações ambientais dos processos de desenvolvimento irá interromper o desenvolvimento normal da adaptação-alvo, como acontece no restante do organismo. O corpo é
projetado para garantir que os sistemas em desenvolvimento apenas “vejam” a variação ambiental que deveriam ver; na maior parte do tempo isso envolve proteger tais sistemas em desenvolvimento da variação.

Não é desejável que o desenvolvimento de corações ou sistemas visuais seja sensível a uma maior variabilidade ambiental do que necessário. Em vez disso, deseja-se que eles se desenvolvam de forma confiável, apesar de qualquer variabilidade existente. A exceção, claro, é a variação ambiental necessária para o desenvolvimento. Na maioria das espécies, existem “interruptores” controlados por genes e pelo ambiente que direcionam os fenótipos a se desenvolverem em alguns tipos discretos, como masculino e feminino. 

Os sistemas cardiovasculares de pessoas cresceram em altitudes elevadas, por exemplo, operam com mais eficiência nessas altitudes do que nas pessoas que migram para altitudes mais elevadas quando adultas. Nesses casos, mecanismos de desenvolvimento específicos provavelmente evoluíram para amostrar variação ambiental relevante e, em seguida, “ajustar” uma adaptação para melhorar seu desempenho nessas condições. 

Em alguns casos, o “ajustar” será bastante dramático, como adquirir um idioma nativo. Em outros casos, pistas ambientais podem desencadear mudanças significativas nas trajetórias do desenvolvimento como parte de uma estratégia evoluída subjacente — a determinação ambiental do sexo em algumas espécies é particularmente um exemplo dramático.

Plasticidade
Outra solução insatisfatória para o debate natureza-criação é a alegação de que o cérebro tem uma propriedade essencial — um molho secreto — chamado plasticidade, que permite a “atuação da criação”. Plasticidade é um termo vago que basicamente significa que o cérebro muda em resposta ao ambiente. A verdadeira questão, no entanto, é por que e como o cérebro pode mudar de maneiras tão úteis. O descritor ‘plástico’ contribui pouco para uma compreensão do ‘porquê’ ou do ‘como’ das respostas neurais ao ambiente. 

Mesmo descrever plásticos reais (ou seja, vários tipos de polímeros orgânicos) como “plástico” não revela nada sobre a natureza de sua “plasticidade”. A plasticidade do plástico é consequência de propriedades microscópicas muito específicas e hierárquicas das cadeias de polímeros, incluindo os tipos de ligações químicas encontradas na estrutura do polímero, o comprimento das cadeias e o número e natureza das ligações entre as cadeias poliméricas. 

Da mesma forma, a natureza “plástica” do cérebro resulta de propriedades muito específicas e hierárquicas de neurônios e redes neurais no sistema nervoso, e são os últimos que interessam. Na melhor das hipóteses, o termo “plástico” descreve vagamente uma propriedade do sistema nervoso (que pode mudar em resposta às mudanças ambientais); não explica essas mudanças.

O desenvolvimento é um produto da natureza
Uma solução genuína para o debate natureza-criação requer abandonar a ideia de que a natureza e criação são parceiros idênticos. Eles não são. Criação (ou cultura) é um produto da natureza. Ela não acontece de forma mágica. Não ocorre simplesmente por expor um organismo ao  ambiente. Ocorre quando as adaptações são expostas ao ambiente. Sujeira não aprende. Rochas não aprendem. A aprendizagem é baseada em adaptações especializadas que evoluíram como todas as outras adaptações. 

Reconhecer que os mecanismos de aprendizagem evoluídos não são exclusivos para o cérebro aprofunda nossa compreensão aqui. Nosso sistema imunológico, por exemplo, é um excelente mecanismo de aprendizagem, um que ilustra alguns dos principais insights que a PE oferece para a evolução da aprendizagem. Patógenos evoluem rapidamente, muitas vezes dentro de um organismo individual. 

Seria impossível para os organismos, via seleção natural, desenvolver defesas contra um patógeno particular que muda rapidamente. A seleção natural, no entanto, descobriu duas coisas sobre os patógenos que não mudam: (1) eles são feitos de proteínas, e (2) essas proteínas são diferentes das proteínas que constituem o hospedeiro. A “descoberta” da seleção natural dessas poderosas abstrações permitiu a evolução de um mecanismo especializado para combater uma enorme gama de diferentes patógenos que, para simplificar reconhece e elimina proteínas estranhas do corpo. 

Apesar do sistema imunológico ter capacidade para combater com sucesso uma ampla gama de patógenos, não é um mecanismo de aprendizado geral do indivíduo. Ele não aprende quais alimentos comer ou como fazer diferentes ferramentas. Pode-se esperar que os mecanismos de aprendizagem cognitiva evoluídos sejam semelhantes ao sistema imunológico: altamente especializado para adquirir informações sobre domínios abstratos que eram relevantes para reprodução no Ambiente Ancestral Evolutivo (AAE).

A natureza é um produto da criação
A Psicologia Evolucionista é totalmente favorável à primazia da natureza. É possível, no entanto, visualizar todas as nossas adaptações, incluindo corações, pulmões e fígados, como produtos do desenvolvimento ou criação. Essa surpreendente conclusão segue do reconhecimento de que a seleção natural é um algoritmo de aprendizagem. Aprender é aquisição de informações úteis sobre o ambiente. 

Através da reprodução diferencial de alelos através das gerações, a seleção natural “aprende” quais tipos de transformações aumentam a reprodução em um determinado ambiente e armazena essas informações no genoma.  Em uma espécie, cada alelo fixado pela seleção natural é uma peça valiosa de “aprendizado” com informações sobre as características que são úteis para a reprodução dessa espécie em seu ambiente ancestral de evolução. 

Assim, todos as adaptações do corpo são, nesse sentido, um produto da “aprendizagem”. Porque este ‘aprendizado’ é levado por muitas gerações, vamos chamá-lo de “aprendizagem vertical”. Como todos os algoritmos de aprendizagem, a seleção natural só pode aprender padrões ou relacionamentos estáveis. Em um nível, o ambiente é tão variável que parece impossível que a seleção natural pudesse aprender qualquer coisa útil. O sarampo difere do estreptococo, as maçãs diferenciam-se das laranjas. 

Níveis mais altos de abstração, no entanto, podem ser extraordinariamente estáveis ao longo das gerações. Sarampo e estreptococos são ambos patógenos, uma classe grande e duradoura de organismos perigosos, todos os quais introduzem estranhos proteínas no corpo; maçãs e laranjas são frutas comestíveis, uma grande e duradoura classe de produtos vegetais que são uma fonte rica em carboidratos. 

A seleção natural pode ‘aprender’ a lutar contra patógenos ao desenvolver um sistema imunológico, e pode ‘aprender’ a identificar e metabolizar frutas ricas em carboidratos, desenvolvendo um conjunto de sistemas sensoriais, cognitivos e digestivos. A seleção natural tende a produzir adaptações que operam, não nas particularidades variáveis de um ambiente, mas em domínios abstratos como patógenos e frutas que são altamente estáveis nas gerações. 

Se o que seleção natural muitas vezes tende a aprender são abstrações, então, necessariamente,
ela também deve produzir mecanismos que “preenchem os detalhes”, aprendendo padrões específicos de domínio e relacionamentos que são variáveis ao longo das gerações (e, portanto, não podem ser diretamente “aprendidos” por seleção), mas estável dentro deles. Vamos chamar
esses mecanismos de mecanismos de aprendizagem “horizontais”. 

A seleção natural projetou o sistema imunológico para detectar e eliminar proteínas estranhas, mas, em operação, o sistema imunológico deve aprender a detectar e eliminar o sarampo e estreptococos. De forma similar, a seleção natural projetou nossos sistemas sensoriais para identificar fontes de carboidratos usando pistas como cor e sabor, mas esses sistemas, em operação, devem aprender a identificar fontes de carboidratos, como maçãs e laranjas. 

Esses argumentos sugerem que a aprendizagem (no sentido usual do termo) deve ser generalizada no organismo, e é. A maioria dos sistemas corporais coleta informações sobre seus ambientes e altera suas propriedades de forma adaptativa. Esses argumentos também sugerem que muitos organismos, incluindo humanos, terão uma série de mecanismos de aprendizagem especializados para domínios abstratos reprodutivamente relevantes. 

Aprender a evitar animais venenosos é uma coisa, aprender a localizar alimentos nutritivos é outra. A distinção natureza-criação é real e importante. É a distinção entre padrões ambientais
reprodutivamente relevantes que são estáveis ao longo de muitas gerações versus aqueles que são estáveis por períodos muito mais curtos. Padrões ambientais relativamente estáveis podem causar a evolução de todos os tipos de adaptações — nossa natureza. 

Padrões ambientais mais variáveis podem causar a evolução de uma classe mais restrita de adaptações: adaptações de aprendizagem — aspectos especializados de nossa natureza que permitem o desenvolvimento. A seleção natural é um engenheiro brilhante. É, portanto, tentador especular que, pelo menos em um animal inteligente como os humanos, ela poderia ter produzido um mecanismo de aprendizagem horizontal que eliminou a necessidade de outras adaptações cognitivas especializadas. 

A reprodução é um negócio complexo que se baseia na complexa estrutura causal do meio ambiente. A seleção natural ‘aprende’ o que fazer nesse ambiente conduzindo um enorme número de “experimentos”. Cada indivíduo em uma população com variação genética — um ou mais mutações genéticas — é um “experimento”. Aquelas mutações que apresentam resultados reprodutivos positivos aumentam sua frequência no pool gênico da população. 

Cada mutação apresenta informações aprendidas sobre algum aspecto causal reprodutivamente relevante da estrutura do ambiente. Este processo experimental ocorre geração após geração, produzindo um corpo substancial de informações empiricamente verificadas importantes para a reprodução. O objetivo final de tudo que os organismos fazem é produzir descendentes deles próprios com sucesso. 

Informações sobre o grau em que um indivíduo atinge esse objetivo, no entanto, não estará disponível para uma geração inteira — geralmente depois que o indivíduo está morto. E mesmo se isso pudesse mudar alguma coisa, o que deveria mudar? Cada ação que um indivíduo tomou sobre sua vida pode impactar potencialmente a reprodução de sua prole (muitas vezes apenas por produzi-los, para começar). Quais ações o aproximaram do objetivo de gerar descendentes reprodutivos, e qual vai mais longe? O indivíduo não tem como saber. Ausente uma quantidade enorme de conhecimento prefigurado, a reprodução é impossível de aprender. 

A estrutura causal reprodutivamente relevante do ambiente é muito complexa em relação ao número de eventos reprodutivos de um organismo individual. O que a seleção natural pode aprender sobre reprodução experimentando com milhares ou milhões de indivíduos ao longo de centenas e milhares de gerações é, para um organismo individual com apenas uma vida, uma névoa impenetrável. 



Tradução e adaptação de “Nature vs. Nurture” a partir de Controversies surrounding evolutionary psychology, por Edward H. Hagen, no capítulo de The Evolutionary Psychology Handbook.

Samuel Fernando
Samuel Fernando

É biólogo, estudante de engenharia de computação e vinculado a um grupo de pesquisa em neurociência computacional na UFABC. Ele está interessado em promover e acelerar a nanotecnologia molecular e a futura nanorobótica.

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