Antes de começar a ler…
Este é um texto escrito no início do surto de coronavírus, e muita coisa aconteceu em 1 ano de pandemia. Uma contribuição mais atualizada (e complementar) da relação entre biologia comportamental e coronavírus pode ser lida aqui.
Imagine que te peçam para cuspir dentro de um frasco esterilizado e que, depois de 15 segundos olhando para aquilo, seja solicitado que você posicione o frasco na boca novamente e engula a saliva de volta. De 0 a 10, quanto nojo você sentiu? A depender da resposta, é possível dizer a probabilidade de você ser um ultranacionalista ou alguém que evite pessoas acima do peso no ônibus.
Os mamíferos têm uma longa história com parasitas (bactérias, vírus e helmintos). Para se proteger deles, o sistema imunológico se tornou uma adaptação útil, mas não inteiramente eficaz: sintomas como febre e fadiga são respostas metabólicas de mal estar que acontecem depois da infecção, e não antes, o que pode ser debilitante demais[1]. Para resolver esse problema, tornou-se necessário que, no lugar de apenas esperar pelos parasitas, os organismos também fossem capazes de exibir comportamentos que evitassem a contaminação, e daí evoluiu o sistema imunológico comportamental. Alguns exemplos incluem as fêmeas de camundongo, que respondem adversamente ao odor de machos doentes[2], os sapos-boi, que evitam nadar em poças infectadas[3], e os chimpanzés, que excluem e atacam membros do bando que tenham contraído pólio[4].
Nós, seres humanos, também temos nossas precauções. Evitamos não só pessoas que pareçam estar doentes como também aquelas que podem carregar silenciosamente algum parasita. “Esse indivíduo é parte do meu grupo?”, “Eu conheço seus hábitos?” e “Essa pessoa parece saudável?” são uns dos primeiros questionamentos que fazemos a nós mesmos ante a um desconhecido. Mas essas previsões podem muito bem levar-nos a conclusões erradas. Por exemplo, todo mundo sabe que ingerir fezes é nojento, mas e ingerir um brigadeiro de chocolate com formato de cocô? Mesmo sabendo que é um brigadeiro, as pessoas comumente se recusam a ingeri-lo[5]. Isso nos faz enxergar que nossos impulsos psicológicos inatos podem ser mais fortes do que nosso conhecimento adquirido.
O nojo evita não só a contaminação pela ingestão, antecedendo um mal estar causado por uma febre, como também evita a contaminação através do contato com desconhecidos, já que tal contato pode levar à infecção por novos patógenos, sobretudo quando os desconhecidos mantêm costumes alimentares, higiênicos e sexuais não muito convencionais à cultura de quem avalia[6]. Estima-se que 90% da população nativa das Américas morreu por conta de catapora, sarampo e gripe trazidas da Europa[7]; igualmente, a sífilis levada das Américas moldou boa parte dos costumes sexuais da Europa Vitoriana[8].
Algumas evidências apontam que processos psicológicos antipatogênicos modulam a sensibilidade ao nojo, fazendo as pessoas sentirem mais ou menos repulsa, o que prevê com segurança a tendência ao etnocentrismo e à xenofobia[9]. Também há a modulação na atração física, o que nos influencia a preferir rostos que aparentam ser mais saudáveis[10]. A ativação desses mecanismos psicológicos também ocorre quando entramos em contato com pessoas obesas[11] ou em idade mais avançada[12], e quando o sistema imunológico original é suprimido durante o primeiro trimestre da gravidez, tornando as gestantes mais sensíveis tanto ao cheiro de comidas estragadas como à convivência com desconhecidos[13].
Ameaça e nojo parecem estar positivamente correlacionados, isto é, a incidência de um é maior se a do outro é maior, o que traz profundas implicações para o comportamento social entre grupos diferentes. Mas e quando a ameaça passa a ser entre pessoas do mesmo grupo? Do ponto de vista coletivo, a prevalência de doenças infectocontagiosas numa comunidade eleva a sensibilidade ao nojo em seus habitantes, tornando-os menos abertos (“openess”) e menos extrovertidos (“extravertedness”)[14]. Comunidades que convivem com a ameaça de infecção condenam moralmente comportamentos localmente incomuns, como ser canhoto[15]. O índice de doenças infectocontagiosas também possui correlação positiva com culturas coletivistas[16] e com nações de valores autoritários[17, 18] e regimes ditatoriais[19]. Em outras palavras, ameaças de infecção levam certas culturas a adotarem princípios anti-individualistas e, principalmente, autocráticos. O padrão é encontrado tanto em sociedades industriais como em tribos isoladas de caçadores-coletores[20].

“O Judeu como Parasita do Mundo”, dizia a propaganda nazista em 1944.
O passado também pode nos dizer alguma coisa. Em 1918 a Gripe Espanhola varreu do mapa 50 milhões de pessoas e, junto do final da Primeira Guerra Mundial, criou um palco perfeito para os regimes que se seguiriam. Hitler pessoalmente tinha vários sintomas de alta sensibilidade ao nojo: tomava banhos incessantemente[21], prezava pela pureza do corpo[22] e sentia repulsa ao sexo casual[23]. Suas políticas eram higienistas, tendo proibido tabaco e condenado o álcool[24], além de ter determinado a fumigação de fábricas e navios com Zyklon B, um pesticida alemão (o mesmo usado para matar judeus nas câmaras de gás)[25]. Para a propaganda nazista, judeus eram “parasitas mundiais”, “pestes”, “ratos”, e a Alemanha o “corpo que apodreceria”[26] por causa deles.
Nada garante que algo semelhante não aconteça com a nova pandemia de coronavírus. Como se as pessoas começarem a estocar papéis higiênicos não fosse sintomático por si só[27], há ataques diários de xenofobia. Cidadãos asiáticos estão sofrendo em sociedades ocidentais pelo simples fato de serem asiáticos[28], enquanto a discriminação contra africanos negros na China também já foi relatada[29]. Além disso, na Europa, diversos líderes políticos estão tomando a oportunidade para pedir o fim da livre circulação de pessoas entre países. O nacionalista Matteo Salvini usou o vírus como instrumento político[30], alimentando o sentimento de pertencimento dos italianos por alegar que eles foram abandonados pela Europa. A nacionalista Le Pen, na França, mencionou coisa semelhante[31]. Na Alemanha, o partido nacionalista Alternative für Deutschland já culpou as fronteiras abertas pelo surto do vírus[32]. Do outro lado do Atlântico, o Presidente Donald Trump, com seu tweet “This is why we need borders” (“É por isso que precisamos fechar as fronteiras”[33]), também segue na mesma linha.
É difícil fazer previsões, principalmente fora da Europa Continental, mas a situação atual de países como Suécia, Austrália, Estados Unidos, Reino Unido e Grécia é de fortalecimento dos grupos nacionalistas, e o surto de coronavírus não parece prejudicá-los[34]. Teremos uma ascensão de nacionalismo coletivista autocrático? Teremos um surto de etnocentrismo e demonstrações de racismo? É cedo para dizer. Como vimos, existem muitos exemplos de como nossa percepção de limpeza e pureza extrapola nossa necessidade puramente física e, pelos hábitos, pela linguagem e pela política, se tornam um julgamento moral pernicioso. Mais do que nunca, agora é hora de reconhecermos que certos instintos primitivos são desadaptativos para uma sociedade globalizada, e, daí, escolhermos racionalmente como agir.

Advogado com especialização em disputas internacionais pela American University e mestre em Conflitos internacionais pela Queen Mary University of London com foco em investimento estrangeiro e psicologia social.