Nos últimos anos, muito do tema que divulgamos foi apropriado por portais conservadores, religiosos e tradicionalistas que, quando não é o caso de não entenderem metade da ciência que querem tratar, promovem uma versão parcial, simplificada e ideologicamente comprometida dela. O entendimento desejado por essas páginas é o de que, hoje hipergâmicas e sem valor graças ao feminismo, as mulheres seriam – e teriam que ser – “simples e belas”. Homens, ao contrário, seriam provedores de uma relação monogâmica fechada como permitida pela Igreja Católica.
E nós temos alguma parcela de culpa nisso. Pavimentando a compreensão do público sobre biologia comportamental, começamos pelo básico e sempre nos opomos ao construtivismo social de muito da sociologia e da esquerda política como abordagens incompletas, biofóbicas e de cientificidade questionável. Embora isso tenha nos possibilitado um maior alcance, por outro lado isso “radicalizou” parte de nosso público. Por exemplo, alguns de nossos feedbacks vinham de pessoas que, dizendo concordar com tudo, afirmavam que gênero sequer existe e tudo no comportamento de homens e mulheres é biológico.
Esse é o cenário em que nos encontramos agora. De um lado, negacionistas da biologia sem especialidade nem intimidade com ela enganando milhares de pessoas. Do outro, o resultado inevitável de um efeito colateral. Agora é hora de trazer as coisas de volta ao eixo. Inédito na divulgação científica brasileira e no mundo, o seguinte texto trata de um fenômeno que contraria muitas narrativas sobre estratégias sexuais de homens e mulheres, casamento e padrões culturais. Ele trata do que é chamado de “paternidade partível”, a crença indígena que permite que mulheres aumentem seu sucesso reprodutivo se casando com muitos homens.
Em sociedades modernas, o casamento é uma instituição monogâmica que inclui um homem, uma mulher e dois ou mais filhos biológicos. Apesar de pesquisas recentes terem demonstrado o papel do cristianismo e da globalização na origem dessa cultura,[1][2] muitas pessoas ainda pensam que ela representa toda a espécie humana.[3][4] De fato, humanos são majoritariamente monogâmicos (o que comentaremos em outra ocasião), mas o mesmo não pode ser dito sobre o casamento.
Culturas humanas podem ter casamentos poligínicos (um homem com várias mulheres), poliândricos (uma mulher com vários homens) ou monogâmicos (um homem com uma mulher). Os três também podem ocorrer dentro de uma mesma cultura. Em especial, existe uma forma de casamento que, ainda que pareça exótica para muitos habitantes de sociedades industriais, é bastante popular em diversas sociedades indígenas: a poliandria de paternidade partível (do inglês “partible paternity”).[5]
Diferentemente do conhecimento ocidental de que crianças só podem ser geradas com o esperma de um único homem, a paternidade partível é a crença de que uma criança pode ser filha de vários homens ao mesmo tempo. Pessoas de sociedades com paternidade partível acreditam que mais de um homem pode contribuir para a formação de um feto. De acordo com o costume, há um pai primário e pais secundários, os últimos que costumam ser amantes da mulher. Todos os “co-pais” têm direitos, responsabilidades e são reconhecidos como parte da família.
Uma forma interessante de começar a entender a origem e a função da paternidade partível até seu estabelecimento cultural está em observar o que acontece em outros animais. Em inúmeras espécies, evoluiu em machos uma tendência de matar filhotes de machos rivais. Esse infanticídio masculino assegura a paternidade do macho assassino forçando que as fêmeas se tornem férteis de novo.[6][7]

Langur-cinzento infanticida (esquerda) fugindo de uma fêmea de um grupo no qual tentava entrar. De “Comportamento Animal: Uma Abordagem Evolutiva” (Alcock, 2011).
Mas, em resposta, evoluiu nas fêmeas de muitas dessas mesmas espécies uma outra adaptação. A ecóloga comportamental Sarah Hrdy relata um caso:
As fêmeas de babuínos africanos se esforçam para acasalar com vários machos. Somente os machos que nunca acasalaram com ela […] são potencialmente infanticidas. Os machos que acasalam com ela […] são mais propensos a escolher os filhotes nascidos posteriormente para proteção especial.[8:158]
No langur-cinzento (Presbytis entellus), uma espécie asiática de primatas, os infanticidas também só atacam aqueles filhotes que eles não ajudaram a criar.[9] E isso não é tudo. Hrdy menciona ainda que, graças à manipulação feminina, os filhotes têm mais chances de sobrevivência:
Embora as estimativas masculinas de paternidade sejam razoavelmente boas, elas nunca são perfeitas. Assim, babuínos filhotes geralmente se encontram com mais de um protetor masculino, mesmo que tenham apenas um progenitor real.
Essa estratégia – um exemplo de comportamento sexual que Hrdy chama de, em vez de promíscuo, assiduamente maternal – recebe o nome de confusão de paternidade (do inglês “paternity confusion”). Mas, afinal, o mesmo poderia explicar o fenômeno, do comportamento feminino ao estabelecimento de toda uma crença, em humanos?
Entre as tantas sociedades indígenas que reconhecem a poliandria por paternidade partível estão os Aché do Paraguai e os Barí da Venezuela. Com altas taxas de mortalidade infantil por infanticídio, a relação parece se confirmar em ambas as tribos. Crianças Aché e Barí que crescem com dois pais têm em média mais chances de sobrevivência do que crianças sem pai.[10][11][12]
Ao contrário do que se poderia esperar, porém, as chances de sobrevivência infantil não aumentam com o número de pais. Nas duas populações, o número ótimo de pais parece ser dois – nem mais, nem menos.[13] Uma possível razão é que a promiscuidade feminina desencoraje o investimento masculino pela divisão de atenção, o que diminui o comprometimento e causa ou aumenta o ciúme. (Diferente do que afirmam alguns sociólogos, o espancamento e a morte de esposas por maridos ciumentos é infelizmente comum em sociedades tradicionais.)[14]

Caçador Aché. Foto por Kim Hill.
Em humanos, dados que dizem respeito especificamente à relação entre o infanticídio e a confusão de paternidade são escassos. E uma vez que são muitas as sociedades poliândricas que reconhecem a paternidade partível, torna-se difícil concluir que a relação, que existe entre os Barí e os Aché, também se aplique a todas as outras populações do registro etnográfico.
Felizmente, os sociobiólogos têm um arsenal de ferramentas metodológicas à disposição e não precisam depender de uma única premissa ou variável.[15] Como a frequência da poliandria humana é menor do que a da poliginia e da monogamia (embora seja maior do que comumente assumido),[16] é possível que a poliandria por paternidade partível seja uma adaptação condicional.[17]
Com isso em mente, os antropólogos evolucionistas Robert Walker e seus colaboradores, em Evolutionary history of partible paternity in lowland South America,[18] considerando uma gama de possíveis benefícios evolutivos para os homens e mulheres envolvidos, buscaram identificar a origem da paternidade partível e sua prevalência nas sociedades indígenas da América do Sul. Para isso, eles tiveram que somar vários esforços diferentes.
Primeiro, eles organizaram uma escala hipotética de sociedades mais ou menos permissivas. De um lado estariam sociedades patrilocais (“patriarcais”), em que a organização social gira em torno dos interesses masculinos; do outro, sociedades matrilocais (“matriarcais”), com mulheres tendo maior poder político. O lado mais patrilocal incluía paternidade singular (biológica), adultério imoral, violência contra esposas adúlteras e tabus sexuais. No lado oposto estaria paternidade partível geral, sexo extraconjugal institucional, alta autonomia sexual feminina e ausência de tabus sexuais.

Escala de sociedades mais ou menos permissivas. Mais à esquerda, menos permissiva; mais à direita, mais permissiva. De “Evolutionary history of partible paternity in lowland South America” (Walker et al. 2010).
Em seguida, eles fizeram um levantamento das principais famílias linguísticas do continente (uma família linguística é um conjunto de línguas aparentadas faladas por determinados povos) e parearam com os dados etnológicos de 128 sociedades. De todas as sociedades da amostra, 52 não apresentavam dados sobre paternidade partível. No entanto, 76 apresentavam. Dessas, 53 eram sociedades com paternidade partível e 23 eram sociedades com paternidade singular.
Como é muito difícil que um antropólogo não documente a presença de paternidade partível quando ela existe, eles consideraram que, isolando as 52, a porcentagem de paternidade partível podia cobrir até 70% de todas as sociedades. Isso aponta que, nas sociedades estudadas, a crença na paternidade partível pode ser mais comum do que a crença na paternidade singular.
Posteriormente, eles testaram se a matrilocalidade (caso você tenha se esquecido, é o modo de residência de sociedades em que mulheres têm mais autonomia e poder político) tendia a ocorrer junto da poliandria por paternidade partível. O resultado foi positivo. Mais ainda, as únicas quatro exceções eram de tribos (Cinta Larga, Matis, Koripako e Wanana, todas patrilocais) em que a paternidade partível era uma estratégia que visava primeiro o interesse reprodutivo dos homens.
Nas análises filogenéticas das famílias linguísticas pareadas com dados etnológicos, Walker e colegas conseguiram mostrar que, além da crença na paternidade partível ser quase onipresente nas famílias Tupi, Caraíba, Macro-Jê e Pano, a origem do fenômeno pode ser traçada até a pré-história.

Distribuição aproximada das seis maiores famílias linguísticas consideradas no estudo. A prevalência da paternidade partível é rara nas Arawak e Tukano. Idem.
Quanto aos benefícios evolutivos para a manutenção da prática nas sociedades em que ela ocorre, eles listaram as cerca de dez hipóteses existentes:
As mulheres (1) podem receber recursos de mais homens, (2) maximizar o número per capita de investimento parental masculino, (3) formar laços sociais com mais homens, (4) aumentar a diversidade genética da prole futura e (5) garantir um substituto caso o pai ou provedor principal morra. Os homens (6) podem ter fácil acesso a sexo e mais oportunidades reprodutivas, (7) conseguir mais casos extraconjugais, (8) formalizar alianças políticas com outros homens, (9) fortalecer relações com parentes homens e (10) garantir sua reprodução e cuidado parental em um ambiente de escassez.

Mais detalhes. Respectivamente, as primeiras cinco são femininas e as outras cinco são masculinas. Inclui o tipo de relação entre os co-pais, evidências a favor e contra. Idem.
Como exibido na imagem, muitas dessas hipóteses são complementares, algumas têm mais suporte científico do que outras e nem todas se aplicam à mesma população. Sobre os benefícios para o sexo feminino, eles concluem:
A maioria das sociedades indígenas provavelmente exibe paternidade partível como uma estratégia feminina cujo objetivo é angariar algum investimento e apoio social de vários homens. Isso pode ser uma forma de garantia para caso de abandono ou morte do marido.
Quanto aos benefícios para o sexo masculino, porém, eles salientam:
Os homens podem mitigar os altos custos de criar a prole de outros homens se trocam esposas com irmãos e aliados, enquanto homens de alto status podem manipular o mercado de acasalamento extraconjugal a seu favor. […] Acreditamos que nosso esquema está correto, mas que os processos subjacentes que levam as sociedades para um lado ou outro da escala são multifacetados e incluem estratégias masculinas e femininas.
E isso é verdade não só quando se trata de poliandria por paternidade partível.[19] Mulheres de sociedades patriarcais também podem negociar seus interesses genéticos em resposta às condições disponíveis. Como pontuou a ecóloga comportamental Barbara Smuts em The evolutionary origins of patriarchy:
Nem sempre é do interesse reprodutivo de uma fêmea aliar-se a outras fêmeas contra os machos. Frequentemente, as fêmeas se saem melhor competindo com outras fêmeas e/ou aliando-se aos machos. Entre os humanos, tais estratégias femininas podem reforçar o patriarcado.[20]
Em relação à diversidade humana, Sarah Hrdy destaca um ponto importante:
Essas mentalidades [de permitir paternidade partível] são muito diferentes daquelas da sociedade ocidental, onde uma longa história de recursos transmitidos patrilinearmente deixa os homens preocupados com a paternidade genética e coloca as crianças cuja paternidade está em dúvida em séria desvantagem. Em sociedades com paternidade partível, em que depender de um único pai pode ser custoso demais, ter vários pais possíveis surte o efeito oposto.[8:155]
Um grande avanço trazido pelas ciências evolucionistas comportamentais está na compreensão de que adaptações psicológicas, um nome moderno para instinto, não precisam ser inflexíveis, gerais ou para o bem de todo o grupo.[21]

Leões são um caso clássico de espécie em que machos têm comportamento infanticida contra filhotes de machos rivais. No entanto, nem entre eles esse comportamento é universal. Foto por Lara Jackson.
O infanticídio e a confusão de paternidade, por exemplo, não são universais nem nas populações animais em que acontecem, nem em seres humanos.[22] Eles dependem de vários fatores ecológicos (por exemplo, o número de machos para fêmeas em uma dada população) e genéticos (a reprodução individual e a diferença de tamanho e força entre os sexos).
De uma forma ou de outra, o caso ilustra como o comportamento social humano pode ser complexo, instigante e desafiador. Nesse sentido, a cultura humana, em vez de arbitrária, independente das vontades dos indivíduos ou “construída socialmente” por um grupo que quer “manter seus privilégios”, sem exceção, contra outro grupo, pode ser estudada como a expressão ecologicamente delimitada de adaptações e mecanismos psicológicos evoluídos inerentes aos conflitos de interesse de homens e mulheres.[23:513]

Idealizador da E&S, é formado em Ciências Biológicas (IB/UFRJ), bolsista PIBIC em Taxonomia e Sistemática (LabEnt/UFRJ), filiado ao grupo de pesquisa Evolução, Moralidade e Política (CNPq/UFRRJ) e apaixonado pela abrangência da teoria evolutiva.
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