A pedagogia brasileira tem como base teórica o paradigma socioconstrutivista. Na aprendizagem da leitura, por exemplo, postula-se que o aluno não deve ser ensinado a ler de maneira direta e explícita, começando pelo som das palavras, pelas sílabas e por memorizar o alfabeto e as leis da decodificação; pelo contrário, o que a nossa BNCC (Base Nacional Curricular Comum) assume é que o professor deve, por meio da organização de “experiências significativas de aprendizagem”, estimular a descoberta e o desenvolvimento da leitura pelo aluno.
A Base peca por dois motivos. Primeiro ao rejeitar o ensino explícito e progressivo de conteúdos específicos e absolutamente necessários para as aprendizagens futuras, e segundo por tomar o texto (a situação da prática discursiva em toda a sua complexidade) como unidade de ensino, em vez de ajudar a criança a consolidar o conhecimento fundamental sobre a linguagem escrita, o princípio alfabético e sua relação com a ortografia e desta com a morfologia da língua.
Assim, como aponta Benedetti em A Falácia Socioconstrutivista: Por que os alunos brasileiros deixaram de aprender a ler e escrever, a abordagem socioconstrutivista confunde a fala com a leitura-escrita. Ao fazer isso, a prática docente acaba ignorante não só às janelas de aprendizagem (o que em Etologia chama-se de estampagem, que nada mais é que um período ótimo e limitante para a intuição e fixação de conceitos ou comportamentos) e aos alunos com dificuldades neurológicas congênitas, mas principalmente ao fato de que a leitura-escrita é uma aquisição cultural e não, como a fala, uma adaptação de fácil desenvolvimento:
“As neurociências, ou as ciências do cérebro, incluem diversas áreas de conhecimento, como a neurologia, a psicologia, a neurofisiologia, a neurobiologia, a genética comportamental. Elas têm se desenvolvido juntamente com o avanço das técnicas de neuroimagem […]. [Essas técnicas] têm permitido que os cientistas estudem os processo neurológicos subjacentes a comportamentos complexos como o processamento da linguagem, a fala, o pensamento abstrato, o raciocínio matemático, a leitura etc. Um dos efeitos mais relevantes e notáveis dessa nova frente de pesquisas científicas, portanto, é começar a fazer a interface entre a dimensão biológica e a dimensão social manifesta do comportamento humano. […].
Descobriu-se que o cérebro humano conta com uma área específica, uma rede complexa de vias nervosas visuais e auditivas na qual ocorrem as representações visuais, semânticas, sonoras e de articulação das palavras no decorrer do aprendizado da leitura-escrita. Essa região originalmente se desenvolveu com a função de reconhecer rostos, mas diante da invenção cultural da escrita, passou a ser utilizada, por meio da “reciclagem neuronal”, para cumprir outra função: a da leitura.
[…] [A] leitura-escrita, do ponto de vista neurológico, constitui uma aquisição, uma aprendizagem inteiramente distinta da nossa linguagem verbal inata, embora diretamente relacionada a ela. A linguagem escrita é um artefato cultural e não um produto da psicogenética do desenvolvimento cognitivo, do pensamento simbólico ou semiótico, como apregoam os teóricos das ciências sociais. Embora sua função seja funcionar como instrumento da linguagem verbal semiótica, seu aprendizado refere-se ao aprendizado de um sistema, de um código, de um instrumento cultural.
[…] Nesse sentido, as habilidades que predizem a facilidade ou a dificuldade com que as crianças apresentarão no decorrer do processo de alfabetização e na posterior consolidação da leitura-escrita ortográficas em nada se relacionam com o aspecto discursivo ou semiótico da linguagem verbal. São habilidades relacionadas ao processamento fonológico, à manipulação morfossintática da linguagem, à memória de trabalho e ao pensamento lógico: aritmética, memória fonológica, vocabulário, consciência fonológica (especialmente fonêmica) e seqüenciação.
É por isso que toda a organização curricular no Brasil se tornou inteiramente contraproducente, de maneira que tem ficado evidente que a imensa maioria dos alunos não está aprendendo a ler e a escrever minimamente e, quando o consegue, carrega seqüelas e dificuldades permanentes no trato com a linguagem escrita. Os currículos nacionais — sejam estes das redes públicas ou dos sistemas particulares de ensino — têm priorizado o desenvolvimento das habilidades semióticas e discursivas da linguagem (habilidades de compreensão), e não os elementos primordiais e estruturais para o domínio precedente da leitura-escrita. Nossos currículos estão na contramão do que a natureza biológica do aprendizado da leitura-escrita exige.
[…] Sendo assim, praticamente a totalidade dos trabalhos realizados na área pedagógica baseia-se, explícita ou implicitamente, na concepção de plasticidade cerebral generalizada, segundo o qual o cérebro é um órgão tão flexível e moldável pelas aprendizagens, que sua estrutura biológica não restringe ou limita as atividades humanas; e no modelo sócio-histórico do relativismo cultural, segundo o qual não existiria uma natureza humana biológica, delimitando o homem como espécie. Essa concepção considera que o ser humano nasce inteiramente moldável e é constituído por imersão na cultura. Trata-se da concepção do materialismo dialético marxista de Vygotsky e Bakhtin. Para a grande maioria dos cientistas sociais, a maioria dos comportamentos humanos seria fruto da aprendizagem social, da interação entre o organismo biológico e o meio. Pouco consideram como as especificidades e os limites do nosso aparato cerebral biológico poderia configurar (como de fato configura) as produções culturais humanas.”
Como exposto por Benedetti, a doutrina do socioconstrutivismo, tão em voga na pedagogia brasileira, ancora-se na noção de que a capacidade de leitura-escrita surge de maneira tão espontânea quanto a capacidade de falar, bastando a criança estar inserida em um meio letrado com estímulos ricos, em situações significativas de aprendizagem e com mediação adequada. Apesar de soar contraintuitivo que uma abordagem da ciência social não somente admita como defenda a existência de um instinto humano (o que é comum é que digam que o comportamento humano se resuma à cultura), a noção peca por relacionar, indevidamente, duas coisas que não são obrigatoriamente interdependentes.
O interacionismo gene-ambiente não é simplesmente retroalimentado — existem limites impostos pela circuitaria neuronal, a mesma que filtra os estímulos certos na hora certa. Se é importante levar em conta que a própria pedagogia é um fenômeno tutoral que possui uma história evolutiva em que os mais experientes ensinam diretamente os menos experientes, a consequência mais óbvia é também aceitar que o ensino explícito, e não o ensino socioconstrutivista, é o melhor caminho para o desenvolvimento e a aquisição de conhecimentos culturalmente valorizados.

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.
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Matheus
Pode fazer um texto explicando o processo de estampagem em crianças? Se eu quando criança aprendi primeiro a falar “preda” e depois “pedra”, “preda” não devia estar estampado como parte do meu vocabulário?