No dia 13 de janeiro de 2021 foi executada nos Estados Unidos Lisa Marie Montgomery, pelo crime de assassinato de Bobbie Jo Stinnett, uma grávida de 23 anos, cometido em 16 de dezembro de 2004. A perpetradora do crime, à época com 36 anos, estrangulou Stinnett e cortou seu feto, com oito meses de gestação, de seu útero. Ela foi a primeira presidiária federal em 67 anos a ser executada pelo governo federal dos Estados Unidos. E provavelmente uma das últimas. Há uma pressão internacional de organizações de direitos humanas pela abolição da pena de morte. Os abolicionistas acreditam que a pena de morte é a pior violação dos direitos humanos, porque o direito à vida é o mais importante, e a pena de morte a viola. A Anistia Internacional considera ser “a negação definitiva e irreversível dos direitos humanos”. Em um mundo democrático, baseado em preceitos humanistas e secularistas, tais argumentos são muito apropriados. A instituição jurídica da pena capital deve desaparecer da sociedade nos próximos anos, pelo menos no mundo ocidental e em democracias liberais. Mas qual a relação entre pena de morte e a história evolutiva da humanidade?

A pena capital esteve presente em todos as primeiras civilizações do mundo, no Egito, Babilônia, Assíria, Pérsia, Grécia antiga, Creta, Fenícia, entre os hebreus, romanos, hindus, chineses, incas e astecas. Aconteceu não só por crimes de violência, mas por crimes menores e até triviais como negligência na venda de cerveja (de acordo com o Código de Hammurabi). As execuções sempre atraiam multidões ansiosas pelo espetáculo de crueldade. Relatos etnográficos mostram que a pena de morte existiu em todos os continentes habitados, especialmente entre os inuits, nativos norte-americanos, aborígines australianos e forrageadores africanos. Milhares de condenações foram aplicadas nos últimos séculos em todo o mundo e a pena de morte ainda é uma realidade em 20 países, incluindo os Estados Unidos e a Coreia do Norte, onde o ditador Kim Jong Un teria executado pelo menos setenta de seus súditos em seus primeiros quatro anos no poder, incluindo seu vice premier, o ministro da defesa e um tio, por supostas traições e conspirações.

Uma execução pública por decapitação em Edimburgo, Escócia, em 1794. A execução pública era um evento popular e multidões apareciam para assistir!

O controle social representado pela morte de morte durante milhares de anos esbarra e envolve necessariamente a evolução do Homo sapiens. Seria negligente reduzir a prática da pena capital apenas ao escopo cultural, assim como o fenômeno da criminalidade intimamente relacionado com a punição. A pena máxima foi sempre aplicada em indivíduos erráticos, déspotas, agressivos e assassinos, principalmente homens, um tipo de controle que, segundo alguns autores, pode estar relacionado paradoxalmente com o processo de auto-domesticação humana. Assim escreve Richard Wrangham em seu livro The Goodness Paradox:

“No que diz respeito à ideia de que o Homo sapiens se autodomesticou, a questão crítica é se os indivíduos com uma propensão particularmente alta para a agressão reativa tendiam a ser mortos. O fato característico em relações igualitárias indica que a execução de possíveis déspotas foi de fato sistemática. Mesmo agora, embora homens caçadores-coletores normalmente respeitem a autonomia uns dos outros, há relatos que ocasionalmente alguns indivíduos tentam controlar os outros. Como chimpanzés alfas, esses aspirantes a déspotas defendem seu status superior reagindo ferozmente aos desafiadores. Em um mundo sem prisões ou polícia, aqueles agressores cuja agressão reativa foi particularmente flagrante, só poderiam ser interrompidos pela execução. Assim, o igualitarismo encontrado entre todos os caçadores-coletores indica que a maioria dos indivíduos agressivos foi eliminada. A irônica e perturbadora conclusão é que o igualitarismo, um sistema que atrai por sua falta de comportamento dominador, é possibilitado pelo mais dominador comportamento no arsenal humano”.

É nesse contexto primitivo que a pena capital parece surgir e cumprir um papel entre os humanos. Sociedades de humanos não possuem categorias de hierarquias definidas como os chimpanzés, onde a rivalidade entre machos pelo acesso às fêmeas implica lutas brutais e morte de outros competidores, a categoria alfa não se aplica aos humanos como nos primatas. O status dos machos na espécie humana não depende da violência física recorrente e lutas mortais. Humanos competem por influência social, o prestígio acaba sendo mais importante que a força física bruta nas tomadas de decisões do grupo. Tanto entre os caçadores coletores, como entre os humanos modernos, a assertividade, competência social e sabedoria prevalece sobre a agressividade. Mas a história não termina aqui. Esse arranjo social deve ter uma razão de ser. Nosso parentesco com os chimpanzés implica que as hierarquias, baseadas na competição e agressão, existiu entre os humanos ancestrais de forma implacável. Dados arqueológicos demonstram que a violência e competição por recursos, mulheres e territórios eram prevalentes em todas as sociedades humanas primitivas, mas a redução da força das hierarquias parecem direcionar as sociedades para um tipo de igualitarismo.

Christopher Boehm estudou dezenas das sociedades caçadoras-coletoras e sugeriu que a superação da competição violenta foi possibilitado pela morte de alfas, ele descobriu uma norma social universal: como parte da coesão social, espera-se que os homens não sejam dominadores ou “valentões”, mas isso não impede o surgimento de indivíduos antissociais que violam as normas. Para controlar tais indivíduos, a melhor estratégia é a execução deles. Assim a pena capital se resume em assassinar os assassinos violentos, o que implica numa seleção darwiniana contra a agressividade. Segundo Boehm, os caçadores-coletores atuais praticam (ou praticaram nas últimas décadas) a pena de morte em todas as seis regiões do mundo em que habitam — América do Norte e do Sul, África, Ásia, Austrália e Ártico — logo, essa prática tem sido, de fato, muito difundida, tanto agora quanto no passado. Porém, temos apenas um elemento sociocultural importante. Quais seriam as consequências biológicas a longo prazo? Como esse fenômeno pode afetar a genética humana? 

O autor aponta a possibilidade de que a moralidade poderia ter impactado a seleção natural e vice versa, visto que os mecanismos da seleção natural podem ser invocados para explicar a consciência moral em humanos e o ato de punir, coletivamente, nossos desviantes morais. A moralidade, intimamente associada com a justiça, tem um aspecto sombrio e perturbador, tema de debates filosóficos e jurídicos por séculos, que é a punição dos desviantes. Matar membros do próprio grupo sempre foi moralmente condenado, afinal cada indivíduo é útil coletivamente para a coesão social, a crença hebraica do “não matarás” precedeu de muito a redação do texto sagrado. Porém, nunca foi um preceito absoluto, essa condenação histórica e universal estava sujeita a importantes exceções, por exemplo, o assassinato por misericórdia, assim como o infanticídio, uma ferramenta de controle de natalidade presente em centenas de povos e tribos. Enquanto a famigerada pena de morte era legítima e permitida como estratégia de grupo para lidar com atos extremos e intoleráveis. Tais assassinatos eram decididos pela comunidade, normalmente recebendo forte apoio da maioria das pessoas. 

Atualmente sabemos a partir de dados experimentais da área de neurocriminologia que assassinos e psicopatas apresentam anormalidades cerebrais — funcionais e estruturais cérebros; as conexões com as emoções morais (baseadas no sistema paralímbico), bem como o processamento da impulsividade e o controle e julgamento (sistema límbico e córtex frontal) estão afetados, resultando em déficits morais e seus marcadores: a internalização de regras, vergonha, remorso e medo. Em geral, essas pessoas mostram pouca identificação com as regras morais e sociais, daí o termo antissocial na psiquiatria. Uma estimativa conservadora aponta que psicopatas modernos do sexo masculino representam 1% da população moderna, o que sugere que pré-historicamente, talvez um em cada vinte grupos de caçadores-coletores provavelmente enfrentaria problema com psicopatas adultos, violentos ou dominadores. 

Foi para lidar com psicopatas e assassinos frios e cruéis, sádicos e tiranos que nós, humanos, recorremos à pena de morte por pelo menos 45.000 a 80.000 anos ou mais. A execução foi a estratégia mais eficaz para garantir a autoproteção e a justiça. E desde que um grupo escolhe eliminar um valentão dominador ou um psicopata no auge da vida, o sucesso reprodutivo desse indivíduo é interrompido. Além disso, ele deixa de sustentar parceiros, seus descendentes e parentes. Isso definitivamente pode mudar o pool genético. Assim como o altruísmo, a pena de morte afetou mecanismos comportamentais e seus correlatos gênicos no contexto da seleção darwiniana, o que não significa um propósito das pressões seletivas, mas um fenômeno afetado pela seleção natural.  

Albert Fish, assassino em série, sádico, masoquista, pedófilo e canibal norte-americano condenado à morte na Cadeira Elétrica em 1936.

A hipótese evolutiva da execução concorda com esse relato e sugere que durante milhares de gerações pré-históricas e histórica, as vítimas da pena de morte eram desproporcionalmente aquelas com uma alta propensão para agressão reativa, tirania ou sadismo. A morte ou repressão de tais indivíduos pode ter acontecido com tanta frequência que nossa espécie evoluiu para um comportamento mais pacífico, com um temperamento menos agressivo. Embora saibamos que existe uma enorme dificuldade de quantificar as taxas de execuções ou calcular as pressões seletivas do Pleistoceno, a síndrome da domesticação humana pode ser resultado, em parte, da pena capital. Uma vez que não há machos alfa estritamente demarcado na espécie humana como na de chimpanzés, tudo indica que os grupos aprenderam a controlar os agressores usando agressão letal. Richard Wrangham ainda relaciona a hipótese da execução como fator para a autodomesticação e a evolução da linguagem como ferramenta útil para coalizão e tomada de decisões dentro de um mesmo grupo: 

“Muito provavelmente, portanto, a habilidade linguística melhorou substancialmente na linhagem do Homo sapiens em comparação com todos os outros hominídeos. Com essa melhoria, veio a capacidade de indivíduos de um grupo formarem coalizões que excluíssem ou eliminassem um membro do grupo que se tornara um agressor dominador. Essas coalizões permitiram a seleção humana contra machos excessivamente agressivos. O resultado foi a mudança contínua na direção de uma espécie mais cranialmente graciosa, pedomórfica e tolerante – ou autodomesticada. Em suma, a capacidade de murmurar sobre o quanto nos ressentimos de algum outro indivíduo, e lançar a ideia de fazer algo drástico a respeito, certamente tem feito parte do legado humano por pelo menos alguns milhares de gerações. Se a linguagem começou a se desenvolver há quinhentos mil anos, seu crescente significado social ajuda a explicar como nossos ancestrais começaram a controlar os machos alfa e, assim, criaram um tipo de Homo. Nesse modelo de autodomesticação, a linguagem foi a principal característica do Homo sapiens que permitiu muitas ferramentas de controle social, da fofoca à pena capital”

Assim, a pena de morte nada mais é do que a instituição legal de uma prática que por milhares de anos serviu à seleção darwiniana em prol da cooperação social e imposição da ordem entre grupos sociais e contra a agressividade, um fenômeno paradoxal que, com o auxílio da linguagem e outros mecanismos sociais, proporcionou a evolução de sociedades mais pacíficas. No mundo moderno, as prisões substituíram a pena capital e normalmente o final de todo indivíduo altamente violento, tirano e assassino é a reclusão e penas severas em penitenciárias de segurança máxima, ou ainda, em alguns países, a pena máxima, perpétua ou execução. O comunicado da execução de Lisa Montgomery mencionada no início do artigo é um exemplo muito atual e surpreendente em uma democracia liberal do uso da linguagem escrita elaborada e da coalisão de agentes públicos e da sociedade para execução de uma assassina violenta em pleno 2021! 

O comunicado de execução emitido pelo diretor de um presídio federal norte-americano para a condenada Lisa Montgomery em 13 de janeiro de 2021.

Finalmente, é interessante observar que o senso comum moderno rejeita qualquer tentativa de fundamentar a ética humana em uma moral darwinista por imaginar que os “mais aptos”, de acordo com a obra de Charles Darwin, seriam os poderosos, tiranos ou assassinos. A instituição da pena de morte mostra que, na verdade, há uma seleção contra o comportamento violento e dominador em favor da cooperação social em sociedades mais pacíficas e estabilidade dos grupos sociais. E isso não é apenas um fenômeno cultural, a hipótese da execução é sociobiológica e explica como esse fenômeno foi mantido na pré-história e na história humana até os tempos modernos. Importante finalizar dizendo que esse artigo não é uma defesa normativa da aplicação da pena capital. Teorias sociobiológicas são descritivas e não prescritivas. 


Nota
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A imagem destacada no artigo mostra a execução de William Kemmler, a primeira pessoa executada usando uma cadeira elétrica em 6 de agosto de 1890, na prisão de Auburn, em Nova York, pelo crime de assassinato de sua esposa a machadadas. Segundo relatos, após 17 segundos com uma tensão de mais de 1000(volts) aplicada sobre seu corpo, William Kemmler voltou a respirar, sendo ligada novamente dessa vez por 2 longos minutos, gerando fumaça na sala de execução e causando vômitos em um dos presentes, e, assim, Kemmler foi finalmente executado.

Samuel Fernando
Samuel Fernando

É biólogo, estudante de engenharia de computação e vinculado a um grupo de pesquisa em neurociência computacional na UFABC. Ele é um visionário e está interessado em promover e acelerar a nanotecnologia molecular e a futura nanorobótica.

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