Sobre o texto
Enquanto a morte de Wilson era lamentada e noticiada por veículos de informação como Nature, BBCNPRReutersNew York TimesThe ScientistMongabayThe Guardian e Globo, outros foram na contramão e mostraram para todo mundo como são capazes de agir feito abutres. Esta é a tradução do abaixo-assinado A rebuttal to “The Complicated Legacy of E. O. Wilson”, uma resposta à publicação difamatória e infundada feita pela Scientific American contra o recém falecido biólogo Edward Osborne Wilson, que foi acusado — sem qualquer prova — de racismo.

A autora da opinião acusa não só ele, mas Mendel, o pai da genética, e vários outros. 
Contestada sobre não ter citado o motivo de achar que Wilson foi um racista e onde, como, quando ele teria sido, ela disse que é contra citações e que omitiu de propósito para que as pessoas pesquisassem por si mesmas. Ela prosseguiu alertando que questioná-la é provar seu ponto, deixando no ar a possibilidade de que acredita que pedir fontes é ser racista. A acusação e a conduta da autora frente aos questionamentos deixaram vários cientistas e estudiosos indignados, o que motivou várias respostas. O biólogo Jerry Coyne chamou a alegação de racismo de “asinina” e foi um dos organizadores do presente texto, cuja proposta de publicação na mesma revista, a Scientific American, foi recusada

Qualquer um minimamente familiarizado com a vida e a obra de Wilson sabe que ele foi um herói para o conhecimento científico. Temos pelo menos
duas entrevistas em que Wilson fala de sua carreira como escritor, ativista conservacionista pelo meio ambiente, entomólogo e biólogo comportamental. Como nós também já mostramos em um outro texto sobre corrupção acadêmica, não é a primeira vez que ele é associado ao racismo sem motivos, mas esta é a primeira vez de uma declaração tão extrema e oportunista. Nem na morte ele terá paz?

O grande entomológo e biólogo evolutivo Edward O. Wilson morreu em 26 de dezembro de 2021 aos 92 anos. Três dias depois, a Scientific American publicou um artigo de opinião desconcertantemente frágil que ignorou seu excepcional legado de erudição, inovação e ativismo para, em vez disso, atacar a história de “empirismo branco” e “racismo científico” da ciência. A texto sugere que as obras de Wilson e de outros pensadores seminais foram problematicamente “construídas sobre ideias racistas” e pede “verdade e reconciliação […] no registro científico”.

Os tratados acadêmicos de Wilson, junto de seus livros populares, foram escritos em um período de surpreendentes cinco décadas, e sua abrangência visionária e prosa graciosa inspiraram gerações de cientistas. Suas dezenas de trabalhos incluem A Teoria da Biogeografia de Ilhas, Genes, Mente e Cultura: O Processo Coevolutivo, Sociobiologia: A Nova SínteseConsiliência e O Futuro da Vida. Entre seus inúmeros prêmios estão o Prêmio Crafoord de 1990, equivalente ao Nobel da biologia não-médica, e os Prêmios Pulitzer pelos livros Da Natureza Humana e As Formigas. Wilson, que foi um conservacionista ao longo da vida, é frequentemente reconhecido como o responsável pelo pontapé inicial de uma compreensão evolutiva universal do comportamento humano, bem como do desenvolvimento de modelos hoje fundamentais na teoria ecológica.

Acostumado com brigas intelectuais, Wilson por décadas sofreu ataques de espantalho e ad hominem. Mas ele se esforçou para manter os padrões de integridade e insistiu em colocar a ciência em primeiro lugar, mesmo quando os militantes chegaram a atacá-lo fisicamente. Wilson foi poupado da indignidade de ler a reavaliação mistificadora da Scientific American. Mas um ensaio com fontes tão fracas e mal informadas levanta questões preocupantes sobre o estado da pesquisa e do discurso científicos. “The Complicated Legacy of E. O. Wilson” é alarmante, não por causa de qualquer revelação sobre Wilson, já que o texto dificilmente trata dele, mas pelos lapsos casuais em questão de conduta básica e verificação de fatos por trás de suas afirmações extremas.

Em “The Complicated Legacy of E. O. Wilson”, a Dra. Monica R. McLemore, professora de Enfermagem e Saúde Reprodutiva da Universidade da Califórnia, em São Francisco, descarrega um arsenal de acusações sobre o falecido cientista, trazendo Francis Galton, Charles Darwin, Karl Pearson e Gregor Mendel no embalo. Ela cita Craig Venter e Francis Collins, mas esquece de contextualizar suas alusões à “procedência complexa das ideias” e ao subinvestimento “em pesquisa sobre o comportamento humano” ao amplamente disseminado “racismo científico” de qualquer maneira razoável.

E que evidência específica McLemore apresenta contra Wilson ou os cientistas do século XIX que ela acusa de opróbrio? Ela afirma ser “intimamente familiarizada” com a obra de Wilson, tendo gostado de seu ficcional Formigueiro e assim se decepcionando com Sociobiologia (que fala sobre a humanidade apenas em seu 26º e último capítulo), por causa de seu papel na ortodoxia de que as diferenças humanas “poderiam ser explicadas pela genética, herança e outros mecanismos biológicos”. Mas, infelizmente, ela não parece ter se familiarizado minimamente com a ciência básica, porque essa proposição é empiricamente indiscutível. Estudos de gêmeos, adoção e DNA em milhões de indivíduos demonstram consistentemente que quase todas as características humanas, seja altura, inteligência ou personalidade, devem pelo menos alguma e por vezes muito de sua variação entre indivíduos a influências genéticas — o que não deve ser confundido com determinação genética como no artigo de opinião de McLemore. E, no entanto, como Darwin, Wilson realmente defendeu eloquentemente uma natureza humana universal, uma premissa que mina agendas racistas.

Além disso, embora McLemore aparentemente quisesse condenar Wilson ao atribuir-lhe essa percepção factual, não está claro que o florescimento da genética do comportamento humano pertença ao registro das realizações científicas de Wilson. A origem da genética comportamental antecede os insights de Wilson por décadas. O fato é que a sociobiologia ajudou a pavimentar o caminho para outras abordagens evolutivas do comportamento humano, com foco na compreensão de nossas semelhanças humanas, bem como no campo nascente da evolução cultural.

Mais lapsos desconcertantes de erudição vêm a seguir. McLemore inclui Wilson, nascido em 1929, junto de Pearson, Galton, Darwin e Mendel, nascidos entre 1809 e 1857, e castiga todos por “ideias problemáticas” e “racistas”. Galton, Pearson e Darwin tinham visões vitorianas que consideramos repreensíveis hoje. Porém, a verdade ou falsidade duradoura de uma teoria científica não depende das opiniões anacrônicas dos cientistas que ajudaram a desenvolvê-la. Mas e então, McLemore descobriu algum preconceito no legado de Wilson?

Aqui a autora prossegue apenas para demonstrar uma inacreditável ignorância de um dos conceitos mais básicos da estatística moderna. Invocando sua experiência em saúde pública, ela afirma que “a chamada distribuição normal da estatística pressupõe que existem humanos default que servem como o padrão pelo qual o resto de nós pode ser medido com precisão”. Isso é um absurdo. Longe de ser uma conspiração de humanos tendenciosos, a “distribuição normal” é uma característica amplamente observada do mundo natural. Nos reinos animal e vegetal, em características como peso e altura durante partos humanos, no comprimento do pepino, na produção de leite bovino, de fato, qualquer característica com muitas variáveis aleatórias e independentes, muitas vezes podem ser encontradas seguindo aproximadamente uma distribuição normal. “Normal” refere-se simplesmente a uma distribuição de probabilidade com uma certa forma matemática, o resultado de valor neutro de variáveis aleatórias que seguiram certos padrões.

Finalmente, aprendemos que “a descrição e a importância das sociedades de formigas como colônias é um componente do trabalho de Wilson que deveria ter sido criticado”. É inacreditável que entre as ofensas mais graves que a autora poderia desenterrar de uma carreira extremamente prolífica “construída sobre ideias racistas” foi o uso de Wilson do termo “colônia de formigas”, um termo padrão que se refere, em entomologia, a grupos de formigas, vespas e abelhas que habitam o mesmo local. Talvez seja por essa lógica que ela também nos convide a condenar Mendel, o pai da genética, que ela conta entre os antepassados intelectuais de Wilson e que “publicou trabalhos e falou de teorias carregadas de ideias racistas”. Mendel, o monge agostiniano, famoso por suas ervilhas e sua reclusão, agora é racista por descobrir a Lei da Segregação? Ou porque ele descobriu que as ervilhas amarelas são geneticamente dominantes em relação às verdes?

Seguindo essa evidência pouco convincente, a autora apresenta três sugestões para o bem da ciência. Ela pede novos métodos na ciência (um argumento estranho na era do CRISPR e do sequenciamento onipresente de genomas), que é preciso “diversificar a força de trabalho científica”, uma prioridade enorme e importante na academia hoje, além de querer “verdade e reconciliação […] no registro científico.” Toda a ideia de um “registro científico” é um pouco confusa, mas McLemore sugere práticas de citação que sinalizem “trabalho problemático” e nomeia sem ironia “acadêmicos de humanidades, jornalistas e outros comunicadores de ciência” como juízes.

Existe um ponto em que podemos concordar com McLemore: “É verdade que uma obra pode ser importante e problemática – as duas coisas podem coexistir. Portanto, é necessário avaliar e criticar esses cientistas, considerando, especificamente, o valor de sua obra.” Na verdade, é assim que a ciência sempre funcionou. Infelizmente, McLemore continua: “e, ao mesmo tempo, suas contribuições ao racismo científico”. Infelizmente, os leitores da Scientific American não encontrarão uma definição clara dessa tendência sinistra, nem quaisquer exemplos de sua existência real no pensamento de Wilson.

Certamente, os editores da Scientific American terem escolhido um cientista da estatura de Wilson para debater acusações infundadas de racismo diz mais sobre o espírito da nossa época do que sobre Wilson. Uma frase em um texto que Wilson escreveu para a Nature em 1981 envelheceu bem: “Para que fique claro, fico feliz em apontar que nenhuma justificativa para o racismo pode ser encontrada no estudo verdadeiramente científico da base biológica do comportamento social”. As ideias de Wilson falam por si e suas dezenas de dignos títulos nos permitem lidar diretamente com suas verdadeiras ideias.  Seus livros estão repletos de uma gratidão permanente, uma admiração humilde de toda uma vida pela complexidade do nosso mundo natural. Seu impacto sobreviverá por muito tempo a qualquer avaliação precipitada e mal informada de seu legado.

Dr. Abdel Abdellaoui, Research Scientist, Department of Psychiatry, Amsterdam UMC, University of Amsterdam
Dr. Rosalind Arden, Research Fellow, London School of Economics
Dr. Georgia Chenevix-Trench, Professor, Genetics and Computational Biology, QIMR Berghofer Medical Research Institute
Dr. Nicholas A. Christakis, Sterling Professor of Social and Natural Science, Yale University
Dr. Anne B Clark, Professor, Department of Biological Sciences, Binghamton University
Dr. Jerry Coyne, Professor, Emeritus of Ecology and Evolution, The University of Chicago
Dr. John Hawks, Vilas-Borghesi Distinguished Achievement Professor, Department of Anthropology, University of Wisconsin–Madison.
Dr. Joseph Henrich, Professor and Chair, Department of Human Evolutionary Biology, Harvard University
Elliot Hershberg, Doctoral Candidate, Genetics, Stanford University
Razib Khan, Unsupervised Learning, Substack
Dr. Nathan H. Lents, Professor of Biology, John Jay College
Dr. Armand Leroi, Professor of Evolutionary Developmental Biology, Imperial College London
Dr. Jonathan Losos, William H. Danforth Distinguished University Professor, Washington University
Daniel Malawsky, Doctoral Candidate, Genomics, Wellcome Sanger Institute
Dr. Hilary Martin, Group Leader, Wellcome Sanger Institute
Dr. Nick Martin, Senior Scientist and Senior Principal Research Fellow, QIMR Berghofer
Dr. Craig Moritz, Professor, College of Science, Australian National University
Dr. Vagheesh M Narasimhan, Assistant Professor, Department of Integrative Biology, University University of Texas
Dr. Nick Patterson, Associate, Department of Human Evolutionary Biology, Harvard University
Dr. Steven Phelps, Professor, Department of Integrative Biology, University of Texas
Dr. David Queller, Spencer T. Olin Professor of Biology, Washington University in St Louis
Dr. Joan E. Strassmann, Charles Rebstock Professor of Biology, Washington University in St. Louis
Dr. Alexander Wild, Curator of Entomology, Lecturer Department of Integrative Biology, University of Texas
Dr. Peter M. Visscher, Professor, Program in Complex Trait Genomics, University of Queensland
Dr. Mary Jane West-Eberhard, Emeritus Scientist, Smithsonian Tropical Research Institution
Dr. Judith Wexler, Zuckerman Postdoctoral Fellow, The Hebrew University in Jerusalem
Dr. David Sloan Wilson, SUNY Distinguished Professor Emeritus, Binghamton University
Dr. Richard Wrangham, Moore Research Professor of Biological Anthropology, Department of Human Evolutionary Biology, Harvard University
Dr. Alexander Young, Research Scientist, Human Genetics Department, UCLA David Geffen School of Medicine
Dr. Marlene Zuk, Regents Professor of Ecology, Evolution and Behavior, University of Minnesota
Appended:
Dr. Jeffrey S Flier, Professor of Medicine, Harvard Medical School
Dr. Axel Meyer, Professor of Evolutionary Biology, University of Konstanz

Matheus Coelho
Matheus Coelho

Idealizador da E&S, é graduando em Ciências Biológicas (IB-UFRJ) e apaixonado pela relação entre comportamento e evolução.

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