Há mais de vinte séculos não há um Faraó e desde então seu idioma foi esquecido, sua história tornou-se lenda e a poeira do tempo já cria dunas que encobrem os trinta e um séculos que precederam o último rei das Dinastias Egípcias. Reconhecido como antigo já pelos Antigos (fenícios, gregos, persas e romanos), o Egito parece ainda hoje envolto em uma névoa mística que obscurece sua longa história e a mescla com os mitos e modas atuais.

Por mais de três milênios a Civilização Egípcia influenciou o mundo ao seu redor, também sendo influenciada pelas vicissitudes dos tempos e dos povos. À primeira vista, esta civilização parece ter surgido ex nihilo das areias do deserto, já com seus templos e palácios monumentais, mastabas, pirâmides e adornos de ouro, marfim e lápis-lazúli. Entretanto, há uma longa e complexa história de como o Egito veio a ser.

Partindo das mais recentes descobertas arqueológicas e (paleo)genéticas, o que se segue é um longo e detalhado, porém longe de ser exaustivo, roteiro para elucidar como se formou a população egípcia e como nasceu e se desenvolveu sua civilização. Ao longo do texto serão indicadas fontes para referência e aprofundamento dos temas concernentes e alguns gráficos complexos serão apresentados (e explicados) para elucidar a questão.

Respire fundo e prepare-se para uma longa jornada através dos milênios. Mas primeiro, algumas observações preliminares. O texto é longo, dividido em sete partes: não é necessário lê-lo de uma vez. Para facilitar a concordância com artigos, livros e a Wiki em inglês, já que a bibliografia em português é limitada, sempre que possível os nomes de populações, povos e localidades serão anglicizados. E sim, haverá muitos nomes!

Também uso abreviações. Eis algumas delas:
— k: significa 1000 (mil), é o sufixo padrão para isso no S.I.
— M: tal qual k, é do S.I e significa milhão (1000000);
— BP: “antes do presente”, será uma unidade recorrente às menções de datas e épocas;
— ~: sozinho, o til significa “aproximadamente”; também será comum para se referir a datas e épocas;
— mtDNA: trata-se do DNA Mitocondrial, o material genético específico das mitocôndrias e que todos herdamos de nossas mães (é um marcador uniparental típico);
— aDNA: refere-se ao DNA Autossômico (ou Nuclear) Antigo, recuperado e tratado a partir de métodos refinados de extração, replicação e análise;
— hgY: significa “haplogrupo do cromossomo Y”, um marcador uniparental herdado de nossos pais (mas somente aos indivíduos masculinos);

É importante notar, também, que a ciência é incremental e cambiante. Muito do que não sabemos hoje poderá vir a ser conhecido no futuro. Algo do que atualmente sabemos poderá vir a se mostrar diferente do que pensávamos. Novas amostras genéticas antigas certamente refinarão e detalharão muito do que atualmente se suspeita. Embora eu tenha compilado estudos recentes, da última década, o conhecimento não é absoluto e imutável: as próximas décadas nos trarão muito mais!

Parte 1 — Saara Verde

África, ~7k BP: note o Saara como uma enorme savana, com rios e lagos.

Conhecemos o Saara como o mais vasto e inóspito dos desertos quentes, um enorme território de terra ressecada, pedras e areia que domina o Norte da África. Ainda hoje, com toda a nossa tecnologia e meios para cruzar esta vastidão ressecada, ele é muito esparsamente habitado. Há milênios o Saara constitui uma barreira quase impenetrável entre a África Subsaariana e o Oriente Médio, barreira efetiva tanto para os animais quanto para os humanos.

Faz sentido supor que tal barreira tenha dado forma à atual distribuição de plantas, animais, pessoas e culturas do Norte da África, apartando-as do resto do continente e dificultando o contato entre norte e sul, leste e oeste. E, sim, é o que se observa na maioria dos casos: flora e fauna típicas do sul são raros ou inexistentes a norte.

O Saara, no entanto, não é eterno. Em um passado não tão remoto, ele era uma vasta e produtiva savana, com florestas ocasionais margeando as porções elevadas de seu relevo, entrecortada por rios sinuosos e pontilhada por lagos permanentes, alguns deles enormes. Gazelas, zebras, elefantes, girafas e gnus vagavam por lá, tal qual fazem hoje no Serengeti, e constituíam presa para leões, leopardos, hienas e guepardos. Era o Saara verde!

O deserto que conhecemos, porém, não é novidade. Noutros tempos ele também existia, maior e mais impiedoso, ainda mais seco e mais quente e cobrindo maior área. Acontece que há pelo menos 8M de anos a região testemunha ciclos de extrema aridez e de savana exuberante. Em geral, nos períodos glaciais, quando a Terra está mais fria e seca, ele desertifica. Nos períodos interglaciais, no entanto, ele tende a se tornar savana.

Após o último Máximo Glacial, o Saara (até então um imenso deserto, ainda maior e mais seco do que é hoje) tendeu à reconstituição da savana, o que começou por volta de 14,6k BP. Ele de fato se tornou uma savana exuberante ao redor de 11k BP [1] e perduraria como tal até por volta de 6k BP, quando começou a aridificar abruptamente, tornando-se um deserto ao redor de 5k BP. Neste meio tempo ele sofreu uma forte seca há 8k BP, que durou cerca de um milênio e é, como veremos, um importante fator para as populações do Norte da África.

Em seu período úmido, o Saara recebe cerca de dez vezes maior volume de precipitação anual, com tempestades sazonais que atingem 31°N. Ele começa a se humidificar pelo sul e o norte apresenta resposta mais tarde. Da mesma forma, a desertificação, ainda que abrupta, começa pelo norte. Por exemplo, ao redor de 6,5k BP as condições do norte do Saara já eram entre semi-árido e deserto.

Enquanto savana, o Saara mantém um feedback positivo para incrementar a precipitação, que advém tanto da intensa evapotranspiração vegetal quanto da redução do material particulado em suspensão. Desta forma, a água precipitada mantém chuvas ocasionais até a época das chuvas de verão, que são intensificadas e avançam para o norte em decorrência da disponibilidade de calor e umidade. Quando se torna árido, o Saara não só tem a evapotranspiração reduzida, diminuindo a disponibilidade de umidade para sustentar o ciclo de precipitação, mas o esparsamento da cobertura vegetal altera o albedo, modificando os padrões de circulação e as chuvas, menos volumosas e mais raras, não avançam tanto para o norte. Assim, a aridez aumenta, a cobertura vegetal diminui e os ventos promovem o fluxo de material particulado em suspensão, que inibe a convecção das tempestades.

Como deserto, o Saara é uma barreira geográfica quase intransponível. Como savana, porém, fornece meios de subsistência para caçadores-coletores e torna possível que grupos humanos percorram grandes distâncias. Espera-se, portanto, extinção da maioria dos grupos e isolamento dos sobreviventes nos períodos desérticos e migrações seguidas de miscigenação nos períodos úmidos.

De volta à Africa
Conforme mencionado, espera-se que haja maior contato entre populações quando o Saara é savana, pois ele possibilita tanto a subsistência humana quanto sua movimentação nestas condições. Entretanto, evidências arqueológicas e genéticas, atuais e de aDNA, sugerem ter ocorrido repetidos eventos de migração da Eurásia para a África [2-10, 16]. Estas ondas migratórias povoavam boa parte da savana do Saara, pois as condições do Levante e da Arábia eram semelhantes (e frequentemente permaneciam úmidas quando o Saara secava), o que lhes permitia obter sucesso com a tecnologia e modo de vida aprimorados para aquele ambiente.

Ainda antes da agricultura, o Norte da África era habitado por populações oriundas da Eurásia. Subsequentemente, diversas ondas migratórias da Eurásia penetraram no continente africano.

Ao longo do texto este será um tema recorrente e aprofundado conforme for conveniente. Por enquanto, o importante é notar como desde o último máximo glacial (pelo menos) a população do Norte da África é influenciada por ondas migratórias da Eurásia e como a maioria das grandes inovações tecnológicas são introduzidas através do avanço destas populações de origem eurasiática que se miscigenam com os autóctones. De maneira geral, apenas recentemente houve maior participação das populações subsaarianas na composição das populações do Norte da África.

Parte 2 — A Primeira Revolução

Os indivíduos do gênero Homo formavam bandos de caçadores-coletores, geração após geração, por no mínimo 2,8M de anos. Muito mais recentemente, no entanto, surgiram agrupamentos populosos e de estrutura complexa, compostos por indivíduos que, em conjunto, eram capazes de produzir e processar o próprio alimento e, desta forma, a caça e a coleta tornaram-se complemento nutricional, não a principal ou única fonte de comida. O advento da agricultura moldou profundamente as sociedades humanas, impondo não só forçantes organizacionais, mas biológicas. A recente adaptação ao consumo deste alimento e à progressiva restrição alimentar, que diminuiu muito a variedade de alimentos consumidos, bem como a adaptação aos comportamentos conducentes à agricultura constituem os elementos majoritários de seleção e, desta forma, influenciam a recente Evolução humana.

Indícios da coleta e processamento massivos de cereais para alimentação humana remontam a 23k BP [10], mas apenas muito mais tarde ocorreria sistematização e controle sobre a reprodução das plantas envolvidas — e, mais tarde, dos animais. Cerca de 10k anos mais tarde, qualquer coisa muito mais próxima do que viria a ser a agricultura ocorria em áreas do Levante. Pouco mais tarde, este modo de vida alcançaria as encostas dos Montes Zagros (extremo oeste do Irã e norte do Iraque), dos Montes Taurus (sul da Anatólia) e do Cáucaso.

Entre 15k-11,5k BP, na região do Levante, prosperava uma população de caçadores-coletores bastante peculiar, que vivia em assentamentos sedentários ou semi-sedentários de grande densidade populacional. Nós os chamamos Natufian — guarde este nome, ele será recorrente. Os Natufian podiam viver de tal forma porque exploravam de maneira sistemática os recursos da região, que eram abundantes.

Caçadores-coletores costumam viver em grupos de grande mobilidade e baixa produtividade. Isso quer dizer que movem-se conforme os recursos locais são exauridos, frequentemente acompanhando os rebanhos que compõem sua caça. Como em geral os ambientes não fornecem o que caçar e o que coletar em abundância, vagam sazonalmente por uma área mais ou menos bem conhecida e, após gerações, costumam se aventurar para regiões vizinhas.

Isso tende a mudar quando encontram uma região que oferece recursos em abundância. Eles tendem a diminuir a mobilidade e explorar de maneira mais intensiva os recursos disponíveis. Ao longo da história humana isso ocorreu com alguma frequência, mesmo nos cantos mais insuspeitos do mundo, como na Estepe dos Mamutes.

A inovação dos Natufian foi a sistematização da exploração de recursos. Viviam em uma área abundante e, como frequentemente ocorre com as populações de caçadores-coletores que encontram uma região assim, diminuíram a mobilidade e intensificaram a exploração. Ao sistematizarem a caça e a coleta, obtiveram maior produtividade: cada pessoa tinha à disposição mais recursos. Com recursos sobrando, a população aumentava. E para manter a qualidade de vida era preciso assegurar a produtividade.

Desta forma, houve algum grau na especialização de tarefas. Havia caçadores e ferramentas especializados para presas grandes e para as pequenas, para a caça local e para a caça em lugares remotos. Havia gente especializada em sistematicamente coletar e armazenar determinadas plantas, madeira, sílex e afins. E como frequentemente trocavam recursos com grupos distando centenas de km, parece ter havido especialização nesta tarefa.

Quando o clima piorou, tornando-se mais seco e mais frio, a bonança diminuiu. Não foi um grande impacto, mas foi um impacto: era muita gente pra alimentar. A tecnologia material e social de que dispunham dava conta de explorar a contento aquele ambiente, mas não seria fácil uma readaptação a um estilo de vida menos produtivo e de maior mobilidade. Talvez isso os tenha incentivado a intensificar ainda mais a exploração sistemática das plantas locais mais produtivas: e gerações mais tarde isso resultaria na agricultura.

Os Natufian coletavam cereais selvagens em grandes quantidades e armazenavam o excedente em silos subterrâneos. Eram capazes de processar este material e produzir farinhas e pães. Em seu período terminal, já eram capazes de produzir argamassa e talvez tijolos. Tinham qualquer coisa como um domínio rudimentar sobre as plantas mais produtivas, mas era algo mais próximo à jardinagem, não era — ainda — a agricultura.

Seus descendentes, no entanto, desenvolveram a agricultura! Estudos recentes [16] sugerem que antigas populações de caçadores-coletores interagiram desde o último máximo glacial e, desta forma, criaram tecnologia e estilos de vida cada vez melhor adaptados à região. Os Natufian, ao que tudo indica, praticavam comércio de longa distância com populações do Zagros e do sudeste da Anatólia, Sinai e Norte da África. Ao longo de milênios, os caçadores coletores da Anatólia e do Zagros também passaram a explorar de maneira intensiva e sistemática suas regiões.

Localmente, no Levante, os descendentes dos Natufian criaram a agricultura (o sítio arqueológico definitivamente praticante da agricultura e mais antigo que se conhece é Tell Abu Hureyra, no nordeste da atual Síria, ~11,5k-11k BP). Através de contatos culturais e miscigenação, seus parceiros do sudeste da Anatólia e do Zagros logo fizeram o mesmo, incrementando suas técnicas e adicionando as primeiras tentativas de domesticação de cabras, ovelhas e porcos (inovações do Zagros). Esta fase pioneira da agricultura ocorreu sem que estas populações conhecessem a cerâmica, desenvolvida no leste da Ásia (vários milênios antes desta época). Por esta razão, os chamamos de PPN (Pre-Pottery Neolithic), e habitaram inicialmente o tão famoso “Crescente Fértil” entre 12k-8,5k BP.

Miscigenados aos agricultores da Anatólia, os descendentes dos Natufian levaram a agricultura à Europa, há cerca de 8,8k BP. Em genética populacional, é comum chamá-los de EEF [9] (Early European Farmers). A população agrícola do Zagros, frequentemente chamada de Ir_Neo, compõe uma porção da ancestralidade mais recente do Levante, Arábia, Nordeste e Leste da África. Na porção noroeste da África há muito vivia uma população de caçadores-coletores aparentada aos Natufian (e que mantinha vínculos comerciais com eles), seus descendentes viriam a estar entre os primeiros a adotar a agricultura neste continente.

De oeste a leste no Norte da África
Mesmo nos períodos úmidos, a porção nortenha do Norte da África se mantinha relativamente árida. Não só o Saara, quando verde, demorava mais para se tornar savana por lá, como o fim dos períodos úmidos é abrupto e começa pelo norte [1]. Desta forma, mesmo com o Saara Verde, a faixa nortenha do continente é composta por uma savana árida, que apenas no verão recebe alguma chuva. Exceto em duas regiões: no extremo oeste, ao longo dos Montes Atlas, a precipitação era mais constante e volumosa, as temperaturas mais amenas e predominava savana entrecortada por bosques; no extremo leste o portentoso Nilo se espalha em leque, formando o Delta, uma imensa região sazonalmente alagadiça ao redor da qual a savana era sempre verdejante.

Por tal razão, o extenso litoral nortenho da África tende a isolar populações. Até bem recentemente, às vésperas do século XX, vivia por lá uma subespécie de leão, que há muito havia se isolado das demais linhagens africanas. Com humanos tende a ocorrer o mesmo, e os períodos áridos do Saara, quando um deserto, devasta as populações ancestrais, que são extintas ou sobrevivem em poucos refúgios, como nas proximidades do Atlas. É, por exemplo, o caso dos antigos Iberomaurusian, uma população de caçadores-coletores do noroeste da África, isolada por lá desde o último máximo glacial.

Tal população vagou ao longo da costa e pelas cercanias do Atlas entre 25k-11k BP, passando a uma exploração sistemática e produtiva, com menor mobilidade ao redor de seu período terminal. Diversos estudos [3-5] mostram afinidade genética entre os Iberomaurusian e os Natufian, com os quais há indícios de trocas materiais. Ou ocorreu grande fluxo migratório e miscigenação dos Natufian (ou de uma população a eles relacionada) para o noroeste da África, ou os Natufian e os Iberomaurusian compartilham a mesma ancestralidade — antigos caçadores-coletores que migraram de volta pra África, posto que ambas as populações compartilham ancestralidade com um indivíduo que viveu em Dzudzuana (Geórgia) há mais de 25k BP.

Um estudo [5] analisou o aDNA de 7 indivíduos que viveram entre 15k-13k BP nas proximidades de Taforalt (norte do Marrocos) e concluiu que eles podiam ter a ancestralidade descria como sendo 63,5% Natufian e 36,5% relacionada à porção sub-Saariana da África. O hgY encontrado é compartilhado com os PPN e o mtDNA recuperado é comum aos falantes de idiomas Afro-Asiáticos atuais do norte e leste do continente.

Observe que os indivíduos de Taforalt coalescem em um cluster próximo ao formado pelos europeus e levantinos; a composição de ancestralidade é mostrada pelas barras horizontais, à direita, e a deles é dissimilar à ancestralidade das populações sub-Saarianas.

O gráfico acima mostra, entre outras coisas, a distribuição de populações atuais (nomes em preto) e antigas (vermelho) em suas componentes principais. Ele é conhecido como PCA (Principal Component Analysis). PC1 explica uma porção maior da variância total dos dados do que PC2, e juntos eles mostram quais pontos são mais semelhantes entre si, através da proximidade: mais próximos, mais semelhantes. A distância horizontal (PC1) é mais significativa do que a vertical (PC2). Nele se observa a proximidade de Taforalt com populações do oeste da Eurásia, enquanto se mantém muito mais distante das populações sub-Saarianas.

Nenhuma população africana atual serve como uma boa aproximação dos 36,5% de ancestralidade não-Euroasiática dos Taforalt, e ela é melhor aproximada por um meio-termo (miscigenação) entre os Hadza e os ancestrais da atual população do extremo oeste da África, e deve ser uma antiga reminiscência de miscigenação com populações-relíquia, posteriormente extintas, de um evento úmido ainda mais antigo do Saara.

Outro estudo [4] investigou a dinâmica populacional ao longo da adoção da agricultura na região. Ele analisa 7 indivíduos do início do Neolítico no Marrocos, que viveram há cerca de 7k BP, designados IAM; também foram inclusos 8 indivíduos do Neolítico tardio marroquino, que viveram há 5k BP, chamados KEB; por último, compara com 12 indivíduos do Neolítico do sul da Espanha, que viveram há 7k BP, designando-os como TOR.

O resultado é que houve continuidade populacional até o início do Neolítico, posto que os IAM coalescem próximos aos Taforalt num PCA, sugerindo uma adoção culturalmente mediada da agricultura. Entretanto, os KEB mostram afinidade com os EEF, particularmente com a linhagem da Cultura Cardium (que levou a agricultura para a orla mediterrânea da Europa através de avanços paulatinos ao longo da linha costeira), confirmando a influência material ibérica no noroeste da África observada desde 7,4k BP. Conforme o esperado, TOR coalesce inteiramente entre os EEF. Como KEB fica entre TOR e IAM, houve miscigenação entre os descendentes dos Taforalt e os descendentes dos EEF no noroeste da África, há mais de 5k BP:

PCA mostrando a similaridade dos IAM com os Taforalt, dos TOR com os EEF e que os KEB eram uma população miscigenada. Populações modernas e antigas são representadas, algumas, bem distantes, são sub-Saarianas.

Como as populações analisadas, incluindo a dos antigos habitantes das Ilhas Canárias (Guanche) coalescem junto às populações Euroasiáticas, faz sentido visualizar mais detalhadamente esta porção do PCA:

O mesmo estudo, mas agora circunscrito às populações Euroasiáticas. O “esticamento” que se observa dos IAM é devido à deriva genética, oriunda de milênios de isolamento, de sua população ancestral (os Taforalt).

O extremo noroeste da África era ocupado, pelo menos desde o último máximo glacial, por uma população Euroasiática fortemente aparentada aos Natufian. Mais tarde, esta população autóctone, por difusão cultural, passou a adotar um estilo rudimentar de agricultura e pastoreio, enriquecendo um pouco mais a genética de sua população com ancestralidade semelhante à Natufian. Depois disso, pioneiros da agricultura européia, os EEF (que migraram originalmente da Anatólia) se miscigenaram à população local e promoveram a adoção de novas tecnologias agrícolas, fortemente influenciadas pela Cultura Cardium do Neolítico europeu.

A outra porção do Norte da África que é bastante hospitaleira à agricultura é o extremo nordeste do continente. É lá que fica o Egito!

Parte 3 — Dádiva do Nilo

Pensamos no Egito como demasiadamente antigo, talvez terra de pioneiros da civilização. Entretanto, apesar de estar bem próximo dos focos iniciais de desenvolvimento da agricultura, exceto por intermitentes experimentos em pequena escala, a agricultura demorou vários milênios para se estabelecer ao longo do Nilo.

Isso ocorreu porque o Saara era uma savana produtiva, o que permitia aos habitantes dos arredores do Nilo viverem de caça, coleta, pesca e de trocas com os agricultores do nordeste. É conhecido que bem antes de a agricultura ser sistematicamente adotada por lá, pastores obtiveram maior sucesso [6, 8, 11]: durante o milênio de pausa do período úmido da Saara, entre 8k-7k BP, pastores vindos do Levante se estabeleceram no nordeste da África, trazendo consigo cabras, ovelhas, talvez gado bovino e tecnologia da época terminal dos PPN.

Por volta desta época, bem a sul, em Nabta Playa, há indícios de consumo intensivo de cereais que remontam a ~7,5k BP. A tecnologia associada e a quantidade e tipo de ossada de animais domesticados indicam se tratar de uma área habitada por pastores, mas a grande quantidade de cereais domesticados ou semi-selvagens sugere ou a adoção de alguma forma rudimentar de agricultura em pequena escala ou intenso contato comercial com agricultores de terras longínquas. Este experimento pioneiro não duraria muito, pois logo as condições do Saara voltariam a ser mais úmidas.

O contraste com o avanço da agricultura no continente europeu é marcante [10]. O sul e leste dos Bálcãs foi intensamente povoado pelos EEF a partir de ~9k-8,8k BP, e a 7,5k BP já havia comunidades agrícolas onde hoje é a Alemanha. Mais tarde, onde hoje é o nordeste da Romênia e sudoeste da Ucrânia, a cultura neolítica Cucuteni criaria vilarejos densamente povoados, verdadeiras proto-cidades que abrigavam mais de 20k habitantes há mais de 7k BP.

Mas conforme a aridez do Saara se intensificava, desta vez de maneira definitiva, os caçadores-coletores da região e os pastores (miscigenados aos caçadores-coletores) buscaram refúgio junto ao Nilo. Desta forma, uma miríade de assentamentos sedentários pontilhou às margens do rio, e há 6,4k BP se tem as primeiras evidências sólidas de prática agrícola sistemática e em grande escala ao longo do Nilo, pertencente à cultura Badarian (~5k-4k BP).

Os séculos seguintes foram de crescimento populacional e avanço da agricultura no Vale do Nilo. Também houve contatos materiais com a florescente cultura urbana de Uruk, onde hoje é o Iraque. Entre 6k-5,1k BP, a civilização urbana de Uruk criaria cidadelas e entrepostos comerciais no Cáucaso, na Anatólia, no Levante e no sul do Irã. Diversos objetos e preciosidades exóticos ao Norte da África foram encontrados no Egito, com clara proveniência de Uruk, incluindo selos, carimbos e peças cerimoniais. O contato com Uruk parece ter sido decisivo para a elite egípcia da época, que passou produzir objetos e arquitetura inspirados pelo estilo estrangeiro e a adotar maior burocracia.

Faca de Gebel-el-Arak, ~5450 BP, com forte influência de Uruk em seu estilo, se é que não se trata de uma peça importada.

Os centros populacionais ao longo do Nilo disputaram influência entre si, coalescendo em três grandes “reinos” [11]NekhenTjeni e Nubt, aproximadamente o que seria Alto, Médio e Baixo Egito. Houve um intenso período de atrito e guerras entre estas potências, conforme elas ganhavam complexidade e rumavam aos fundamentos de uma estrutura Estatal. Por fim, Tjeni prevaleceu e o Egito foi unificado sob um só grande monarca, Narmer~4950 BP.

A coalescência de cidades-Estado em pequenos reinos, destes em reinos maiores e, por último, um Egito unificado seria um tema recorrente ao longo da história [11]. Quando o Egito estava em seus bons períodos, com uma administração centralizada e eficiente, havia um só monarca sobre todo o povo egípcio. Nos períodos de maior opulência, o Egito se expandia, fazendo dos Estados locais seus vassalos ou mesmo os incorporando completamente.

Mas quando a administração central enfraquecia, os monarcas perdiam controle sobre diversas províncias remotas, sendo Faraó apenas em nome. Se houvesse uma crise de sucessão, muito frequentemente o Egito se partia em dois reinos ou mais, um a norte (Baixo Egito) e outro a sul (Alto Egito): e, assim, era presa fácil para potências estrangeiras.

Parte 4 — A época de Our… Bronze!

De fato o Egito, apesar de ter um início tardio na adoção da agricultura, é uma civilização antiga. A famosa Grande Pirâmide, construída por volta de 4,6k BP, já era antiga e tinha sua procedência desconhecida quando Ramsés II, mais de 13 séculos depois, travou batalha em Kadesh. Para os próprios egípcios sua cultura era misteriosa e parecia perder-se nas névoas do passado.

Apesar dos incríveis feitos em arquitetura e da majestosa opulência das pirâmides da IV Dinastia, o ápice da civilização egípcia remonta à posterior Idade do Bronze, especialmente sua porção média e final, quando o Egito era senhor não só de seu próprio território ancestral, mas de boa parte do curso alto do Nilo, dos oásis a oeste do Delta e de boa parte do Levante, exercendo influência sobre a Anatólia e Mesopotâmia, Chipre, Creta e comercializando com vilarejos dos Bálcãs e da Ibéria.

Mas nem sempre foi assim [11]. Em um período de fraqueza da administração central, o Egito viu a enorme população de imigrantes do Levante se rebelar e tomar para si o controle do Estado. Eram migrantes bem conectados às potências estrangeiras através de ligações comerciais e militares, capazes de pioneirismo ao adotar as tecnologias e táticas mais recentes em combate, fazendo poeira da tradicional força militar egípcia. Eram os Hicsos, populações de migrantes do Levante que, após dois séculos de contínuo fluxo migratório para o Delta, se rebelaram e usaram carruagens a cavalo (este bicho que os egípcios jamais haviam visto até então) para derrubar de vez uma administração moribunda.

Entre 3650-3530 BP, o Baixo Egito foi ostensivamente dominado pelos bárbaros do Levante, até que Ahmose I (reinando entre 3550-3525 BP), primeiro Faraó da XVIII Dinastia, os subjugou e novamente impôs domínio sobre um Egito unificado: que encontraria o ápice de seu poder e influência nos séculos vindouros.

O magnânimo Faraó desta mesma dinastia, Amenhotep III (reinando entre 3391-3353 BP), é um ótimo exemplo da vastidão do poderio do Egito à época [12]: sua própria Família Real é um emaranhado de matrimônios com famílias de soberanos estrangeiros.

Amenhotep III era filho de Mutemwiya, que era possivelmente filha de um rei estrangeiro (Artatama I, dos Mitanni) ou, alternativamente, irmã de Yuya, o “Mestre dos Cavalos” (animal introduzido no Egito pelos Hicsos), possivelmente ele mesmo sírio ou Mitanni. Gilukhipa, uma de suas esposas, tem nome hurrita e é filha de Shuttarma II, outro monarca dos Mitanni, irmã de Tushratta, futuro rei dos Mitanni. Outra de suas esposas, Tadukhepa, também da Casa Real dos Mittani, mais tarde seria esposa de seu famoso filho, Amenhotep IV/Akhenaten. E para maior complicação, as Cartas de Amarna mostram uma complexa rede de contatos e casamentos entre a nata da nobreza egípcia e hititas, levantinos, hurritas, babilônios e afins.

Um estudo [13] recuperou o aDNA de indivíduos do Antigo Egito e concluiu que eles formavam cluster com as populações levantinas da Idade do Bronze, havendo continuidade genética da população até os tempos da ocupação romana. Boa parte de sua ancestralidade remontava aos Natufian, com presença também de ancestralidade dos antigos agricultores do Zagros.

Nota-se neste PCA, contendo populações antigas e modernas, como os indivíduos do Antigo Egito formam cluster com a população levantina da Idade do Bronze, estando muito distantes das populações sub-Saarianas atuais.

Ancestralidade das populações analisadas em [13], mostrando similaridade na composição ancestral dos egípcios antigos com os levantinos da Idade do Bronze (e alguma semelhança com os levantinos do Neolítico) e com as atuais populações do Líbano e Palestina.

O estudo mencionado analisou material genético autossômico recuperado de três múmias (duas de cerca de 3388 BP, uma de cerca de 1574 BP) do Médio Egito, havendo forte continuidade genética do Reino Novo ao fim do Império Romano. Os gráficos acima mostram que tais múmias, que em suas respectivas épocas foram burocratas de baixo escalão ou comerciantes ricos, coalescem com as populações levantinas da Idade do Bronze, com a qual também compartilham proporções semelhantes de ancestralidade (Natufian+EEF+Ir_Neo). As populações atuais mais semelhantes na composição de ancestralidade são os libaneses e palestinos.

Este mesmo estudo analisou 90 amostras de mtDNA recuperadas de múmias egípcias de diversas épocas, e as comparou com milhares de indivíduos atuais do Egito e de outras partes do globo. A conclusão foi a de que havia menos de 7% de linhagens típicas das populações sub-Saarianas até o fim da época romana, e que apenas após o tráfico trans-saariano de escravos, inaugurado pelos muçulmanos no século VIII, a ancestralidade da atual população egípcia passou a contar com maior participação de linhagens típicas aos sub-Saarianos.

Composição média das linhagens de mtDNA analisadas em [13]

Uma série de crises políticas, econômicas e climáticas viria a pôr fim às civilizações da Idade do Bronze na orla oriental do Mediterrâneo, Mesopotâmia, Irã, orla ocidental do Índico, sudeste da Europa e na bacia do Indo [12]. Muitos destes outrora poderosos Impérios só seriam redescobertos no século XX, pela arqueologia. O mundo subsequente testemunhou séculos de colapso populacional, guerras, perda da complexidade social (incluindo as tradições escritas!) e aumento da miséria e da fome. Dos grandes Estados do fim da Idade do Bronze apenas o Egito sobreviveu, embora muito combalido. Ele jamais seria tão rico e poderoso, e os 12 séculos seguintes testemunhariam sua paulatina decadência, até ser incorporado como província romana (~2030 BP).

Parte 5 — Areias do Tempo

O Egito sobreviveu enfraquecido ao colapso da Idade do Bronze. Manteve muitas de suas Instituições, manteve a escrita e em algum grau manteve a complexidade social necessária para alimentar grandes contingentes populacionais em centros urbanos, embora estes tendessem a ser menos populosos do que nos séculos anteriores. Entretanto, nos séculos seguintes testemunhou frequente a fragmentação do Estado em pequenas potestades rivais, o governo central se tornar apenas uma formalidade (e uma ficção), o que tornou o Egito presa fácil para invasores estrangeiros.

Baixo Egito, no norte, passou a sofrer ataques rapineiros das tribos de pastores que viviam a noroeste, onde hoje é a Líbia [11]. Eram os meshwesh, pastores bérberes e descendentes distantes dos KEB (conferir o Neolítico tardio do noroeste da África, Parte 2) após se miscigenarem com outras ondas migratórias do Levante [2-3, 6, 17].

Desde o fim da Idade do Bronze os pastores bérberes promoviam excursões rapineiras aos povoados do noroeste do Egito, ao mesmo tempo em que intensificavam o comércio nos tempos de paz. Às vezes os governantes locais empregavam guerreiros bérberes como mercenários em suas rivalidades contra os vizinhos, quando o governo central enfraquecia. Com o tempo, regiões do oeste do Delta começaram a receber imigração massiva de bérberes que adotavam costumes afins aos egípcios em suas cidades [11], ao ponto de líderes tribais bérberes, que usufruíam da bonança nos assentamentos egípcios enquanto exerciam influência sobre nômades do deserto, tomarem de assalto o governo do Baixo Egito (Osorkon, há 2992 BP, no meio da XXI Dinastia).

Os meshwesh estabeleceriam as XXII e XXIII Dinastias, que governaram o Egito até cerca de 2720 BP, em geral a porção norte e intermitentemente trechos do Médio e Alto Egito. Seus governantes tenderam a ser centralizadores e carismáticos, que frequentemente se indispunham com as Cidades-Estado e reinos do Alto Egito. Vários de seus soberanos ordenaram campanhas militares para conquistar, punir ou exercer influência sobre o sul do Levante. Apesar destas grandiosas pretensões, frequentemente o Egito se via às beiras da fratura política, mesmo no Baixo Egito (em tese unificado).

A grande Núbia (Kush)
Logo a sul do Alto Egito, ao longo do curso alto do Nilo, havia uma diversidade de modos de vida, desde caçadores-coletores a pastores ancestrais, com algum tipo de agricultura rudimentar. A interação entre tais populações é misteriosa e parece ter sido complexa [2,3,17,19]. A arqueologia sugere algum grau de contato recorrente entre algumas destas populações do sul e as populações do Alto Egito: durante o período Pré-Dinástico do Egito (cultura Naqada, descendente dos Badarian), objetos de origem egípcia são comumente encontrados em tumbas das culturas de pastores do sul (A-Group), mas as tumbas Naqada não costumam conter objetos provenientes do sul (5,5k-5,1k BP). Ademais, a cultura arqueológica A-Group parece ter sido destruída ou fortemente modificada pela I Dinastia do Egito.

A terra a sul e seus povos, coletivamente chamados Kush pelos egípcios, são brevemente mencionados já no Antigo Reino. Durante o Reino MédioKush foi invadido pelo Egito em algumas ocasiões, às quais se seguiram décadas de colonização egípcia. Quando o Egito enfraqueceu e, mais tarde, foi dominado pelos Hicsos, os habitantes de Kush constituíram ameaça ao Alto Egito. Houve, inclusive, períodos nos quais Kush era mais organizado e rico do que as Dinastias regentes do Alto Egito, recrutando para si sacerdotes, soldados, artesãos e chegando a tomar vilarejos e cidados adjacentes à fronteira [11].

Durante o Novo Reino, houve massivas invasões egípcias e um domínio de mais de 4 séculos. Nesta época, Kush era localmente governada por um emissário egípcio, o Vice-Rei de Kush. A cultura local, que desde o Neolítico mantinha laços com a cultura egípcia, foi fortemente influenciada, sobretudo nas questões religiosas e administrativas. Após o fim da Idade do Bronze, o Reino de Kush rivalizava em população, riqueza e poderio militar com as Dinastias decadentes e Cidades-Estado do Alto Egito, constituindo recorrente ameaça militar.

Enquanto o Baixo Egito era governado por bérberes, o Alto Egito era fortemente descentralizado, com diversas forças políticas disputando influência sobre os grandes tempos e Cidades-Estado de fundamental importância religiosa, os poderosos Reis de Kush, de religião egípcia, decidiram que era hora de resolver os lamentáveis desvios religiosos dos pervertidos egípcios sob seus tiranos bérberes. Inicialmente de maneira pacífica, através de casamentos e influência sobre os templos e sacerdotes, mas depois através da conquista.

Resumo datado das fases arqueológicas da Núbia.

Então Piye (também chamado Piankhi), em 2744 BP, unificou Kush e o Egito (inicialmente apenas a maior parte do Alto Egito, mas em seguida o Baixo Egito, também) sob sua coroa, com o intuito de restaurar a sagrada ordem das coisas e o culto como ele deveria ser. Por um tempo ele até se chamou de Thutmose III [11], o Faraó que 7 séculos antes definiu o domínio egípcio sobre Kush.

Apesar de oficialmente existir um Faraó sediado em Napata (Núbia), haviam ao menos 5 reinos diferentes no Egito, com o rei de Kush sobre todos eles e diversos graus cambiantes de submissão de cada qual. O período da XXV Dinastia foi marcado por uma reverência ao passado distante, com documentos oficiais emulando a estrutura linguística do Reino Antigo e com reis e altos dignatários povoando Kush com tumbas piramidais “em miniatura” (se comparadas à Grande Pirâmide), o que era um costume alheio aos egípcios há cerca de um milênio ou mais.

Quando os reis núbios tentaram emular a pretérita influência do Novo Reino sobre o Levante, o Império (neo) Assírio entrou em rota de colisão com o Egito. Invasões sucessivas destroçaram a delicada rede de influência dos reis de Kush sobre o Egito. Ironicamente, os assírios elegeram um antigo descendente de uma antiga casa real egípcia autóctone para governar como Faraó, rendendo tributos aos soberanos assírios. Assim, em 2664 BP, a XXVI Dinastia tomava forma.

Os séculos seguintes testemunhariam uma sucessão de soberanos estrangeiros impondo controle sobre o Egito. Persas, macedônios e por fim os romanos. Quando o Egito foi formalmente incorporado como província romana (2030 BP), a tradição faraônica foi interrompida. O Egito permaneceu sob controle romano (através do que chamamos hoje de Império Bizantino) até a conquista árabe sob o Califado Rashidun (1354 BP).

Parte 6 — Revisitando Kush

A verdade é que os antigo núbios ainda nos são um tanto quanto misteriosos. A região do alto curso do Nilo, seus afluentes e as terras altas da Etiópia ainda hoje é pontilhada por imensa variedade de povos, falantes de idiomas pertencentes a diversas famílias linguísticas. A história relativamente recente testemunhou migrações massivas e influências culturais determinantes sobre tal área, e há indícios de que eventos assim são recorrentes por lá na última dezena de milhares de anos.

A história populacional do leste e nordeste da África é complexa, sujeita à influência sequencial de populações oriundas de diversas porções da África e da Eurásia, que interagem fortemente entre si. Muito desta interação é pouco compreendida, com a arqueologia frequentemente chegando a impasses. É verdade que aDNA é uma grande esperança para que melhor se compreenda a estrutura populacional desta região, mas as amostras são escassas.

Diversos estudos [5-9,17, 19] sugerem sucessivas ondas migratórias da Eurásia para o nordeste e leste da África. Já sabemos que, pelo menos desde o último máximo glacial, todo o Norte da África era habitado por populações relacionadas aos Natufian, provavelmente de origem euroasiática. Populações relacionadas aos Natufian voltariam a exercer influência sobre o vale do Nilo, terras altas da Etiópia, Chifre da África e região dos lagos mais tarde, difundindo pastoreio e, mais tarde, agricultura. Traços genéticos típicos dos PPN do Levante são recorrentes, tanto em populações antigas quanto nas atuais.

A influência levantina (e, mais tarde, zagrosiana) na difusão do pastoreio no leste (e sul!) da África é bem estabelecida [6-8, 17] e todo um importante horizonte cultural arqueológico envolvido é relacionado a esta migração e aos eventos subsequentes de miscigenação. O SPN (Savanna Pastoral Neolithic) difundiu pastoreio pela região de savana do leste da África a partir de 5k BP, deixando traços inclusive nos Maasai. Posteriormente, pastores miscigenados levariam este traço ao extremo sul do continente. Descendente do PN (Pastoral Neolithic~7k BP, ao longo do vale do Nilo), com posterior componente Ir_Neo (não só Natufian), os SPN são associados à difusão dos idiomas Afro-Asiáticos da família Cushita do Sudão à Tanzânia, embora muitos de seus descendentes miscigenados hoje falem idiomas Nilo-Saarianos (como os Maasai). Os Nilóticos, que talvez fossem caçadores-coletores e pescadores originalmente vivendo às margens dos lagos do leste do Saara, em sua época úmida, parecem ter sido grandes adeptos do pastoreio e muito bem-sucedidos nisso: muitos povos pastores africanos atualmente falam idiomas Nilo-Saarianos e apresentam elevadas proporções de ancestralidade nilótica.

A região da Núbia mostra indícios de contato material e genético com as populações formativas do Antigo Egito, majoritariamente associadas aos levantinos [13, 17]. É crível, também, que durante o Reino Médio e, principalmente, durante o Reino Novo, a Núbia tenha recebido massiva imigração egípcia, que miscigenou-se com os pastores autóctones e terminou por formar o que viria a ser ao menos parte da antiga população do Reino de Kush (3070—1450 BP). Influências subsequentes do oeste e do extremo oeste da África, bem como a muito mais recente expansão árabe e o tráfico trans-saariano de escravos, certamente remodelaram a composição populacional local.

A difusão do pastoreio nos afluentes do Nilo e no leste da África deveu-se à migração de euroasiáticos trazendo este modo de vida do Levante e sul da Anatólia, miscigenando-se com caçadores-coletores locais em eventos sucessivos e, mais tarde, levando traços desta ancestralidade ao extremo sul da África. Conferir [6] e [8].

Um estudo [18] examinou a múmia de Takabuti, que viveu no Alto Egito ao redor de 2660 BP, durante o fim da XXV Dinastia. Ela era filha de um alto-sacerdote tebano de Amun e, portanto, pertencia à alta aristocracia egípcia de sua época e, dado seu status social, devia ser bem-relacionada com a administração dinástica. Surpreendentemente, o mtDNA dela era do haplogrupo H4a1, típico do Neolítico europeu da Ibéria, costa atlântica da França, Irlanda e também encontrado no Levante durante as Idade do Bronze e Idade do Ferro.

Portanto, ao menos seu marcador uniparental materno mostra a persistência da ancestralidade neolítica euroasiática em indivíduos da alta aristocracia do Alto Egito durante a XXV Dinastia. Ela descendia de uma linhagem autóctone que pouco se miscigenou com a nobreza de Kush, ou a própria nobreza de Kush há muito também já mantinha elevados graus de ancestralidade euroasiática.

Outro estudo [19] analisou aDNA de baixa cobertura do chamado “X-Group” pré-cristão do Sudão/Núbia. Conclui que a influência típica da ancestralidade sub-Saariana na Núbia é majoritariamente pós-meroítica (após o fim do Reino de Meroë, ou seja, ocorrendo após 1,6k BP) e sugere que a população X-Group fosse fortemente influenciada por migrações pretéritas do Antigo Egito, provavelmente dominada por falantes de idiomas cushitas (família Afro-Asiática) e que apenas posteriormente adotou idiomas Nilóticos.

Um estudo detalhado [14] examinou o aDNA de 66 indivíduos que viveram entre 1k-1,35k BP em Kulubnarti, Sudão. A conclusão é que, em média, 43% de sua ancestralidade era relacionada aos Nilóticos, 57% melhor aproximada pelos Levante (Neolítico). Esta ancestralidade euroasiática é mediada por fêmeas, sugerindo que a comunidade em questão era de euroasitáticos que com o tempo incorporou indivíduos masculinos de elevada hierarquia social e origem nilótica (mais parcimonioso) ou o contrário, uma população nilótica que incorporou uma migração massiva de mulheres da Eurásia.

Os indivíduos de Kulubnarti, dispersos neste PCA em uma estreita linha entre um cluster euroasiático e um cluster nilótico, indicam que a formação da população se deu pela miscigenação destas populações. Nota-se, ainda, os 3 indivíduos do Antigo Egito, coalescendo no cluster euroasiático.

O estudo mencionado conclui que os núbios atuais não descendem diretamente dos habitantes de Kulubnarti, pois seria necessário incluir muito mais ancestralidade sub-Saariana, especificamente Nilótica. O que provavelmente ocorreu após a conquista muçulmana. A estimativa de intrusão euroasiática na região remonta há pelo menos 5k BP. Corroborando [19], este estudo sugere influência demográfica oriunda do Egito Antigo na região.

A ancestralidade dos indivíduos de Kulubnarti mostra miscigenação entre eurasiáticos e Nilóticos ainda em curso logo antes da conquista muçulmana.

A região que os egípcios chamavam Kush parece ter sido recorrentemente palco de fusões culturais e demográficas, que remontam à introdução do pastoreio por populações de origem levantina e terminam com a muito mais recente influência árabe, após a conquista muçulmana. Também se atesta que havia miscigenação entre as populações locais e pastores Nilóticos antes da conquista muçulmana, mas apenas após a influência árabe recente é que o norte do Sudão (e também o Egito e o Maghreb) testemunhou maior contato demográfico e genético com populações sub-Saarianas.

Parte 7 (final) — Tudo junto e misturado…

Dois dos retratos das múmias de Fayum, do início da época romana.

Após esta longa jornada, qual a síntese? O povoamento do Egito foi complexo, com diversas ondas de difusão cultural e genética ao longo de sua história. O Egito parece ter sido recorrentemente o caldeirão de mistura de diversas influências, gerando uma fusão autóctone que foi culturalmente profícua e demograficamente bem-sucedida por vários milênios.

O progresso da aridificação do Saara levou populações de caçadores-coletores (cuja ancestralidade é relacionada à dos Natufian e Taforalt) a buscar refúgio junto ao Nilo. Por lá já havia pastores levantinos (carregando ancestralidade vinculada aos PPN) e, juntos, a adoção massiva da agricultura, com cultivares e animais domesticados majoritariamente estrangeiros, se intensificou.

Provavelmente o comércio de longa distância com os povos de Uruk estimulou a intensificação da urbanização e o ganho de complexidade institucional. O Egito dinástico surgiu e recorrentemente expandiria seus domínios para sul (Núbia) e para o Levante. Também recorrentemente foi influenciado por levantinos (Hicsos), bérberes e núbios. Em sua época de ouro, durante a Idade do Bronze, a aristocracia egípcia trocava esposas com povos distantes, como hititashurritasmitanni e afins. Mais tarde, o Egito seria dominado por assíriosmacedônios e romanos. E, por último, árabesturcos e maior proporção de sub-Saarianos, já nos últimos 1200 anos.

O Egito tem uma longa história. Ao longo dela não foi lar de um povo, fixo e imutável, mas de uma massa demográfica dinâmica, que incorporou influências culturais e ancestralidade de seus vizinhos, de seus inimigos e de suas colônias. Peculiar e específico, porque só o Egito é o Egito. Mas nada muito diferente do que aconteceu e ainda acontece na maior parte do mundo, na maioria das épocas. Gente faz gente com outra gente: assim foi e assim será.


Fontes

[1] Tierney, 2017Rainfall regimes of the Green Saharadisponível aqui.


[2]
 Vicente & Schlebusch, 2022chapter 8: Ancient DNA Studies and African Population History, apud Africa: the Cradle of Human Diversityconsulte aqui.

[3] Fregel, 2022chapter 7: Paleogenomics of the Neolithic Transition in North Africa, apud Africa: the Cradle of Human Diversitydownload aqui.

[4] Fregel, 2018Ancient Genomes from North Africa evidence prehistoric migrations to the Maghreb from both Levant and Europedisponível aqui.

[5] Loosdrecht, 2018Pleistocene North African genomes link Near Eastern and Sub-Saharan African Human Populationque você encontra aqui.

[6] Prendergast, 2019Ancient DNA reveals a multistep spread of the first herders into Sub-Saharan Africaacessível aqui.

[7] Cole, 2020Ancient admixture into Africa from the ancestors of non-Africanspode consultar aqui.

[8] Skoglund, 2017Reconstructing Prehistoric African Population Structureconsulte aqui.

[9] Reich, 2018Who we are and how we got herecompre online aqui.

[10] Shennan, 2018The First Farmers of Europepara comprar, aqui.

[11] Wilkinson, 2013The Rise and Fall of Ancient Egyptpara comprar online.

[12] Cline, 20151177 BC: the year civilization collapsedadquira online aqui.

[13] Schuenemann, 2017Ancient Egyptian mummy genomes suggest an increase of Sub-Saharan African ancestry in post-Roman periodsacessível aqui.

[14] Sirak, 2021Social stratification without genetic differentiation at the site of Kulubnarti in Christian period Nubiavocê o encontra aqui.

[15] Allentoft, 2022Population Genomics of Stone-Age Eurasiadisponível aqui.

[16] Marchi, 2022The genomic origins of the world’s first farmersdownload aqui.

[17] Sirak, 2022Ancient Human DNA and African Population History; download aqui.

[18] Drosou, 2020The first reported case of the rara mitochondrial haplotype H4a1 in Ancient Egyptdisponível aqui.

[19] Cherifi, 2020Evaluation of DNA conservation in Nile-Saharan environment, Missima, in Nubia: tracking maternal lineage of “X-Group”pode ser obtido aqui.

 

Leandro Cardoso Bellato
Leandro Cardoso Bellato

Infinitamente curioso por quase tudo, amante de ciência e história; formado em Ciências Atmosféricas pelo IAG-USP e atua profissionalmente como Cientista de Dados.

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