Durante a virada de 2021 para 2022, pessoas em todo o mundo participaram de uma das maiores celebrações ritualizadas da humanidade. Para comemorar outra viagem ao redor do Sol, as atividades de Ano Novo incluíam fogos de artifício, beijos e resoluções, bem como algumas práticas exclusivas de culturas específicas, como cozinhar feijão-fradinho e verduras no sudeste dos Estados Unidos, comer uma uva à meia noite na Espanha ou efígies em chamas que representam o ano anterior na América Central e do Sul.
Todas as culturas humanas têm seus rituais — comportamentos tipicamente repetitivos e simbólicos que experimentamos como intencionais, embora geralmente não possamos explicar como eles deveriam funcionar. Esses rituais podem reforçar um senso de comunidade e crenças coletivamente comuns, mas sua diversidade desconcertante também pode alienar e separar as pessoas, principalmente quando os rituais valorizados de uma cultura parecem bizarros para outra cultura.
A maioria dos cientistas que estudam rituais considera suas origens obscuras uma de suas características definidoras. Mas os pesquisadores vêm começando a suspeitar que antes que os rituais se tornassem puramente sociais e altamente peculiares, muitos podem ter começado como tentativas de evitar o desastre.
A ritualização pode ter ajudado as culturas humanas a manter comportamentos que as pessoas pensavam que as manteriam seguras, mesmo depois que o motivo inicial para o comportamento tenha sido esquecido, de acordo com os autores de uma série de artigos de pesquisa recentes publicados em uma edição especial da revista Philosophical Transactions of the Royal Society B.[1]
Formas ritualizadas de preparar alimentos ou limpar o corpo, por exemplo, podem ter surgido como formas de prevenir doenças. Muitos rituais também fornecem conforto psicológico em momentos de dificuldade e, depois de se tornarem uma prática comum, ajudam a unir as pessoas, reforçando um senso de comunidade.
Agora, em meio à pandemia de coronavírus, os humanos estão novamente adotando novos comportamentos em resposta a uma ameaça, embora seja muito cedo para dizer se algum desses comportamentos se tornará verdadeiramente ritualizado. Por definição, isso só aconteceria quando a importância social do comportamento prevalecesse sobre seu uso prático para evitar doenças ou desastres, diz o psicólogo Mark Nielsen, da Universidade de Queensland, na Austrália. É isso que diferencia os rituais de outras práticas culturais, como cozinhar.
“Quando você aprende a cozinhar um determinado prato, provavelmente copia uma receita, mas depois de fazer várias vezes, você pode fazer do seu jeito”, diz ele. Esse tipo de personalização não costuma acontecer com práticas ritualizadas, explica ele, que são repetidas com muito cuidado até que, eventualmente, “perdem seu valor funcional e, em vez disso, são exercidas por seu valor social”.
O conforto da rotina
Em regiões onde desastres naturais e doenças são comuns e a ameaça de violência é alta, as sociedades tendem a ser “mais rígidas”, o que significa que têm normas sociais mais duras e menor tolerância a comportamentos desviantes, diz Michele Gelfand, psicóloga da Universidade de Maryland. Indivíduos dessa sociedades tendem a ser mais religiosos, dando alta prioridade aos comportamentos ritualizados.
A pesquisa de Gelfand descobriu que as atitudes das pessoas sobre a conformidade social mudam quando elas são expostas a ameaças ou mesmo à percepção de perigo. Quando o filme Contágio — que retrata uma história fictícia de uma pandemia mundial — chegou aos cinemas em 2011, Gelfand e seus colegas realizaram um estudo por questionário que descobriu que as pessoas que saíam do cinema sentiam mais hostilidade em relação aos desviantes sociais.[2]
Quando todos nós nos movemos em sincronia, ou executamos as mesmas ações de uma forma previsível, como os rituais geralmente exigem, isso pode criar uma sensação reconfortante de união. Assim, diante do perigo, a cooperação em grupo pode ser uma questão de vida ou morte.
“A cultura do exército é um grande exemplo”, diz Gelfand. Os movimentos de grupo sincronizados praticados por unidades militares em todo o mundo os preparam para agir como uma única unidade em situações perigosas.
Os rituais também podem ajudar as pessoas a superar outros tipos de medo e ansiedade. Martin Lang, da Universidade Masaryk, na República Tcheca, acredita que a previsibilidade dos rituais os torna inerentemente reconfortantes. Sua equipe descobriu, por exemplo, que as mulheres nas Ilhas Maurício se sentiam menos ansiosas em fazer um discurso público após um ritual de oração repetitivo em um templo hindu.[3]
A humanidade dos rituais
Alguns fenômenos que superficialmente se assemelham a rituais foram observados em outros primatas, diz o primatologista Carel van Schaik, da Universidade de Zurique, na Suíça, que estudou a evolução da cultura dos orangotangos. Como todos os animais, os primatas nascem com instintos que os ajudam a evitar perigos e doenças, e também podem aprender a evitar riscos após uma experiência ruim ou observando outras pessoas em seu grupo.
No entanto, os pesquisadores não encontraram evidências de que primatas não-humanos se envolvam em rituais verdadeiros, diz van Schaik. “Isso só surgiu de nossas mentes culturais, que evoluíram no ambiente incomum que criamos para nós mesmos.”
Van Schaik acredita que muitos rituais sociais se originaram quando os humanos começaram a viver em grupos cada vez maiores, especialmente depois que a agricultura permitiu que populações maiores vivessem no mesmo lugar. “Essa decisão fatídica expôs os humanos a todos os tipos de violência, desastres e doenças”, diz ele, “de conflitos dentro de grupos a guerras entre grupos e doenças infecciosas que agora podem se espalhar rapidamente por aldeias inteiras”.
Para evitar que tais catástrofes ocorram, diz ele, os humanos colocam suas mentes muito ágeis e caprichosas para trabalhar. “Por sermos tão socialmente orientados, acho que tendíamos a interpretar qualquer azar como algo que alguém — um espírito, um demônio ou um deus — fez a nós, talvez porque nosso comportamento os perturbou. E então tentamos encontrar uma maneira de fazer coisas que evitassem que esses desastres acontecessem novamente.”
Muitos rituais religiosos, por exemplo, abordam a higiene, a sexualidade ou a maneira como tratamos os alimentos de maneiras relacionadas ao risco de doenças, enquanto outros se aplicam a questões de propriedade e família que geralmente estão na raiz de conflitos. Nem todos os rituais são eficazes porque nem sempre entendemos o que está produzindo o risco que estamos tentando controlar. “Mas alguns funcionaram”, diz van Schaik.
Além de surgir em resposta ao risco, alguns rituais provavelmente persistem por causa de sua associação contínua com a prevenção de risco. No estado rural indiano de Bihar, por exemplo, onde a mortalidade materna e infantil permanece alta, a cientista cognitiva Cristine Legare, da Universidade do Texas em Austin, documentou 269 rituais associados à gravidez e ao nascimento.[4] “A maioria deles são tentativas de evitar resultados negativos”, diz ela.
Uma proporção significativa desses rituais perinatais, como a comida nutritiva que é preparada para a mãe comer durante o Chhathi, um ritual hindu praticado no sexto dia após o nascimento, são perfeitamente consistentes com os conselhos médicos modernos, diz Legare. “Muitos outros são provavelmente neutros,” acrescenta ela, “enquanto aqueles que são perigosos, como dar banho no bebê imediatamente após o nascimento ou alimentá-lo com fórmula até que um sacerdote ou imamo possa dar a bênção para começar a amamentar, são arriscados por causa da falta de água limpa.”
Isso ilustra o quão resilientes até mesmo alguns rituais contraproducentes podem ser, uma vez que ganham significado social, diz Legare, que estuda essas práticas para aprender como promover um comportamento saudável de maneiras culturalmente sensíveis. “É importante considerar que, para a maioria das pessoas, os mecanismos da medicina moderna são tão confusos quanto os rituais.”
Embora os rituais tradicionais tenham sido transmitidos com sucesso por muitas gerações, as práticas da medicina moderna são relativamente novas. “Quando um médico lhe diz que sinte muito e não há nada que possa ser feito, isso pode ser verdade, mas é muito desanimador também”, diz Legare. “Muitas pessoas em todo o mundo procurarão outras opções.”
A evolução dos rituais
Na era da pandemia, os conselhos médicos práticos, como lavar as mãos, tornaram-se um tanto ritualizados. Os especialistas em saúde nos aconselham exatamente como devemos esfregar e por quanto tempo, proporcionando uma sensação de conforto de que, após 20 segundos, provavelmente já lavamos o suficiente.[5]
Outras práticas sociais — como cotoveladas e abraços no ar — também estão se popularizando. E usar máscara (ou optar por não fazê-lo) tornou-se uma forma de mostrar lealdade a um grupo social, bem como uma forma cientificamente válida de reduzir o risco de transmissão de doenças. Não está claro se essas práticas serão repetidas a ponto de nos esquecermos o motivo pelo qual começamos a praticá-las, tornando-se verdadeiros rituais religiosos. Mas nossos esforços para entender por que a pandemia teve início, indo de explicações religiosas a uma ênfase em como os humanos se expuseram a doenças ao danificar o meio ambiente, ecoam nos questionamentos de nossos antepassados para descobrir o que eles fizeram para merecer um desastre.[6]
Felizmente, diz Gelfand, nossa busca por compreensão essencialmente humana também levou à investigação científica, colocando-nos em uma posição melhor do que nunca para prevenir futuras catástrofes. “Quando as pessoas por todo o mundo pensam colocam isso na cabeça”, diz Gelfand, “podemos realmente aprender alguma coisa”.
Tradução do texto Why do humans embrace rituals? Disease and danger may be at the root of the behaviors, escrito pelo jornalista científico Tim Vernimmen.

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T. Silva
Acredito que, no estudo evolucionista das práticas rituais, a ênfase na divisão entre causas últimas e próximas acaba por impedir uma atenção adequada no papel da ontogenia e, principalmente, do desenvolvimento cerebral (que une ambos os níveis de explicação causal) em muitos dos modelos antropológicos e psicológicos atuais. Por exemplo, seguindo uma neuroetologia padrão, ritualização pode ser vista como um mecanismo de controle ativo da manutenção da previsibilidade de estímulos e, assim, um mediador para a homeostase cerebral, presente tanto em práticas individuais (hábito), quanto grupais (rituais) e populacionais (criação de nichos). Ao meu ver, tal heuristica auxilia e restringe nossa busca por mecanismos causais e poderia nos auxiliar a limitar o excesso de teorias elucidativas contemporâneas. Porém tal heurística só se torna clara quando se dá atenção a como causas últimas atuam e se “transformam” em próximas, prestando atenção no que o cérebro faz ao longo do desenvolvimento individual e o porquê dele ter evoluído pra fazer isso.