Desde os anos 90, por intermédio de políticas internas, externas e determinadas mudanças culturais (por exemplo, ações afirmativas, militância, safe spaces, problematização), as universidades estadunidenses têm tido o objetivo não de alcançar a verdade, mas a justiça social. Esse é um fenômeno que pode ser visto também em universidades brasileiras. A partir dos governos petistas, as universidades têm aberto as portas aos grupos minoritários. Essas mudanças têm saldos bastante positivos, em virtude de que, hoje, nós discutimos mais a realidade daqueles desprovidos de privilégios, e temos tornado as universidades muito mais diversificadas do ponto de vista da equidade sexual e étnica. Uma forma de explicar isso, baseando-nos no panorama acadêmico americano dos últimos 20 anos, está no fato de que a proporção de intelectuais de esquerda, os quais tendem a se preocupar mais com questões de justiça social, em comparação com os de direita é, atualmente, de dezessete para um. É possível que o mesmo seja verdade para as universidades brasileiras, pelo menos nos departamentos de ciências humanas.
Todavia, de acordo com o renomado filósofo e psicólogo Jonathan Haidt, autor do livro A mente moralista: Por que pessoas boas são divididas por política e religião, apesar das grandes contribuições que a visão de esquerda outorga ao corpo social e universitário, esse quadro não está isento de problemas. Um deles, por exemplo, é a exclusão de possíveis alternativas que expliquem, de fora da ideia da justiça social, os problemas da sociedade. Pois, como todo mundo sabe ou deveria saber, quando uma visão política é completamente predominante, as análises tendem a se estreitar. Isso ocorre, às vezes, por uma boa causa, ao defendermos a igualdade de oportunidade das minorias e, às vezes, por uma causa não muito boa, ao excluirmos alternativas que potencialmente expliquem os problemas sociais.
Debatendo essa problemática durante uma palestra ministrada na Universidade Duke, enquanto parafraseava o filósofo utilitarista John Stuart Mill, Haidt nos informa que de nada adianta estarmos munidos de argumentos que sustentem a nossa crença se sequer temos noção do que se tratam as ideias que divergem das nossas. Para Mill, caso assim procedêssemos, isto é, excluíssemos de antemão as ideias contrastantes, não haveria motivos tanto para nós, quanto para os nossos adversários revisar as próprias crenças, porque, não fazendo ideia do que se trata a opinião divergente, não haveria razões para adotá-las. A mensagem que esse raciocínio de Mill passa é que precisamos uns dos outros para nos corrigir; de outro modo, cada um ficaria em sua bolha.
Interessantemente, o filósofo Karl Popper, analisando aquilo que ele chama de “mito do referencial” (a ideia de que não seria frutífero nem possível discutir ideias que não partissem do mesmo referencial teórico), pensa de maneira similar a Mill. Segundo ele, mesmo se colocarmos duas ideias completamente opostas em discussão, haveria a possibilidade de o debate ser frutífero, fazendo com que os proponentes retirassem algum aprendizado dele. Mas a visão desses filósofos não é um consenso. Para o famoso economista Karl Marx, não valeria de nada ficarmos debatendo as nossas ideias se não tivermos como objetivo mudar o mundo concretamente. Isso, de certa maneira, faz sentido. Visto que não adiantaria discutirmos as questões políticas sem que tivéssemos o propósito de melhorar, na prática, a vida dos cidadãos do país.
Tendo em vista o pensamento do utilitarista e do economista, Haidt perguntou: qual tipo de “espírito” as universidades deveriam carregar, o de Mill, ou de Marx? Segundo o psicólogo, é impossível, para uma mesma universidade, como instituição, adotar o pensamento dos dois autores como um mantra, isto é, ter o objetivo de instigar e prezar pelo divergente (Mill), e ter o propósito de mudar o mundo concreto (Marx).
Para chegar à conclusão supracitada, Haidt recorre a um dos mais renomados filósofos da história, Aristóteles. Haidt explica que cada instituição ou grupo tem o seu Telos, ou seja, um objetivo, ou melhor, um propósito a que visa. Por exemplo, o Telos da medicina é a saúde; o Telos da lei é a justiça; o Telos da justiça social é a igualdade racial, igualdade de gênero etc. Além disso, esses diferentes campos não estão completamente dissociados, eles interagem fazendo a vida das pessoas melhorar. Os negócios ajudam os cientistas a atingir o seu Telos a partir dos investimentos privados. Os progressistas ajudam a medicina quando apontam que os pacientes negros são tratados com desigualdade, ou quando apontam que os negros, de fato, recebem penas maiores do que os brancos, especialmente quando cometem crimes graves contra os últimos.
Nesse sentido, cada campo, ao buscar o seu Telos, ajuda outro campo a ser excelente a partir da sua própria excelência. Entretanto, ocorre um problema quando determinado grupo tenta, sem ponderação, colocar o seu respectivo Telos como primário em relação ao de outro grupo. Por exemplo, quando um empresário, que visa o lucro, coloca esse propósito em uma pesquisa científica na qual o resultado dos experimentos deverá apoiar o consumo do seu respectivo produto, mesmo que ele faça um grande mal ao consumidor. Esse empresário, juntamente com o cientista, fará mal à população, mesmo que esteja investindo na pesquisa científica. Nesse caso, o Telos do cientista (a verdade), foi deturpado pelo Telos do empresário (o lucro).
Retomando o tópico principal, o motivo pelo qual qualquer outro propósito, a não ser a verdade, seria ruim para o corpus universitário está no resultado dos experimentos apresentados pelas ciências psicológicas. Esses experimentos indicam que o raciocínio humano é muito motivado. Ou seja, nós priorizamos defender e atribuir um maior valor às nossas próprias crenças do que olhar os argumentos divergentes de um ponto de vista amplo, o que significa que não somos bons em pensar cuidadosamente. Haidt, na palestra, afirma integralmente que, psicologicamente, “quando avaliamos uma proposição sobre algo que é bom para nós, perguntamos: ‘Posso acreditar nisso?’. Porém, quando avaliamos uma proposição que não parece ser boa para nós, perguntamos: ‘Preciso acreditar nisso?’. Quando a evidência suporta as nossas crenças, nós tendemos a acreditar, mas quando a evidência diz que a nossa crença não é verdadeira, tendemos a negar as evidências em vez de reanalisar as nossas crenças”. Ou seja, quando se trata das nossas análises sobre as nossas próprias crenças, nós somos tendenciosos, preferindo mantê-las a reavaliá-las sob o escrutínio das evidências. Tal tendenciosidade faz com que os cientistas e estudantes universitários acreditem, genuinamente (pois eles são seres humanos como todos nós, não deuses da racionalidade pura) que a maioria das suas crenças políticas estão corretas. Essas crenças, no geral, são reafirmadas por causa da desproporcionalidade de posicionamentos ideológicos existente no campus universitário — porque não há, suficientemente, pensamentos divergentes (lembre-se da proporção de mais de dez para um dos intelectuais de esquerda, em relação aos de direita).
Sob esse panorama, no qual, em resumo, nós somos tendenciosos, resistindo, por causa disso, à mudança de crenças e às evidências empíricas, para Haidt, os universitários se reuniram ao redor de certas crenças que, pelo Telos que eles e as suas universidades aderiram (justiça social), não podem ser, de forma alguma, desacreditadas, já que elas são tidas como objetos sagrados. Por exemplo, se você não acredita que o sexismo explica todas as diferenças entre os homens e as mulheres no mercado de trabalho, você é um misógino, ou fascista, ou sexista. Na visão dos progressistas mais aguerridos, qualquer diferença que exista entre os homens e as mulheres é devido à sociedade ser patriarcal e sexista. Nenhuma diferença entre os gêneros poderia ser explicada pelo fato de que a nossa espécie passou milhões de anos em uma luta desenfreada pela sobrevivência, desenvolvendo adaptações que maximizem principalmente o sucesso reprodutivo. Não podemos, de forma alguma, recorrer às probabilistas diferenças biológicas, pois elas, de acordo com a ótica desses grupos, são deterministas, o que demonstra sua falta de entendimento das ciências biológicas. Ou seja, novamente, para eles, não existem explicações alternativas que expliquem esses fenômenos sociais.
Uma prova de que adotar a justiça social como Telos seria um problema para as universidades é que os progressistas alegam que, por causa do sexismo endêmico, as mulheres seriam sub-representadas nos postos de trabalho. Isso, de acordo com eles, não pode ser alvo de exame ou de discussão, pois haveria um (pretenso) “consenso” que seria um valor sagrado, adotado como premissa em qualquer debate (“não existem explicações alternativas”). Ninguém seria louco o suficiente de negar que existe sexismo nas sociedades ocidentais, mas dizer que essa é a única explicação para o problema, já é algo completamente diferente.
Primeiramente, podemos dizer que, hoje, o sexismo está bem menos presente do que outrora, em razão de que as mulheres ocupam pelos menos a metade (nos EUA) dos postos de trabalho em profissões que não envolvem tecnologia. A predominância de ocupação de postos de trabalho de profissionais com doutorado é de mulheres. O número de mulheres aumenta conforme a profissão envolve menos tecnologia, enquanto o número de homens cai. As evidencias dos postos de trabalho ocupados no Vale do Silício apontam que não parece haver, pelo menos da maneira que progressistas alegam, sexismo endêmico na sociedade americana. Por que as mulheres ocupam mais da metade dos postos de trabalho em algumas profissões, mas em outras não? Concordemos que não aparenta ser possível dizer que algo é endêmico ao mesmo tempo que está presente somente em facetas muito específicas da sociedade.
Isso claramente mostra que é necessário recorrer a outras explicações para entender as diferenças entre as ocupações dos postos de trabalho entre as mulheres e os homens. Alegar sexismo endêmico não é mais uma resposta satisfatória ao problema. Poderíamos pensar que, talvez, as mulheres, por causa das suas características outorgadas pela seleção natural, são melhores em fazer leituras emocionais, enquanto os homens são melhores em pensamento sistêmico. O que, em média, faz com que os homens sejam melhores em lidar com coisas, e mulheres serem majoritariamente melhores em lidar com pessoas. Ou seja, as aptidões sociais das mulheres, em média, são melhores do que a dos homens, enquanto que as aptidões dos homens em trabalhar com tecnologia, em média, é melhor do que a das mulheres. Segundo os dados apresentados por Haidt, apesar do interesse das mulheres pela ciência, ao longo das décadas, ter aumentado, o interesse pelas tecnologias permaneceu estagnado. Não estamos dizendo que essas explicações biológicas são suficientes, mas apenas mostrando que é possível recorrer a explicações alternativas. Mas todo esse debate não importa, já que a preocupação dos justiceiros não é mais com a igualdade de oportunidades (como, com toda a razão, era na década de noventa), mas com a de resultado, porque é agradável (porém falso) acreditar que seríamos todos folhas em branco que podem ser preenchidas pelas sistemas sociais.
Por causa do Telos que grande parte das instituições universitárias têm tomado para si, não se tem mais como valor sagrado a “verdade”. É irrelevante o que os dados mostram, o Telos das instituições universitárias é mudar a sociedade, não o de buscar a verdade. As alegações dos aguerridos progressistas sempre estarão corretas. Instaurou-se um clima de combate. São eles, os justos e justiceiros, contra os injustos. Quem não concorda com certas premissas ou tem alguma explicação alternativa deve ser marginalizado dentro das universidades ou delas demitido. A única opção, caso o intelectual queira ser bem quisto pelos seus semelhantes, é assumir as crenças e os valores que os justiceiros assumem. Mesmo que essas crenças estejam em desacordo com as evidências empíricas ou não respondam por completo alguma determinada questão.
Em defesa das universidades, as quais são uma justificada fonte de orgulho para humanidade, o viés da justiça social adotado por essas instituições não é “culpa” delas. Isso porque a exclusão de explicações alternativas também é adotada pela maioria dos grupos. Podemos citar a Igreja que, por centenas de anos, condenou e até matou várias pessoas e intelectuais por questionarem as perspectivas consensuais dos fies. Em termos históricos, até ontem as mulheres eram, infelizmente, marginalizadas pela Igreja. Isso por causa de uma explicação completamente religiosa e irracional.
Por fim, o que Haidt quer deixar claro é que adotar qualquer Telos que não seja a verdade pode ser problemático para as universidades. Essa conclusão se dá pela infeliz maneira tendenciosa que os humanos têm de enxergar o panorama social. Tendo isso em vista, temos que nos ater (tantos os estudantes e cientistas, quanto às universidades) à verdade; não a Cristo, ou à justiça social ou qualquer figura ou valor diferente da verdade, porque isso pode incidir em dados falsos e teorias que não correspondem com a realidade. Quanto à justiça social, acreditamos que a entender como igualdade de oportunidades está de acordo com o Telos da verdade. Por exemplo, no caso das ações afirmativas, elas ampliam as oportunidades de grupos minoritários. Assim sendo, uma coisa não exclui a outra porque igualdade de oportunidades é diferente de igualdade de resultados. A primeira ideia está em conformidade com o fato de sermos individualmente singulares, aceitando também explicações alternativas, a segunda exclui as diferenças singulares e, como consequência, também as explicações alternativas.
Como nós, estudiosos, universitários ou cientistas, apesar de termos argumentos supostamente excelentes, poderemos entender melhor a realidade e convencer alguém se não tivermos contato com os pensamentos divergentes? A verdade tem de ser a nossa bandeira tribal em razão de que, de outra maneira, valendo-se de uma ideia popperiana, o progresso científico será debilitado, visto que não se conceberão outras conjecturas — muito menos refutações.

É mestrando no PPGFil/UFRRJ e atualmente trabalha com filosofia política, em específico como as tendências psicológicas da espécie humana afetam os desdobramentos práticos das éticas normativas.
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Marciel
Aquilo que chamam de justiça social não passa de mero populismo.